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UMA CHAMA AO VENTO
20/01/2011 00:10:42


M. Paulo Nunes

 Há romances que têm uma história pessoal e uma história literária e artística. Às vezes a primeira é tão importante quanto a segunda. Discutem-se muito mais as peripécias de sua trajetória pública, do que seus aspectos estéticos, como o estudo dos personagens, o estilo, em suma, os elementos intrínsecos de sua construção romanesca. A primeira, às vezes tem tanta força que eclipsa sua estrutura interna.

O Doutor Jivago, do russo Boris Pasternak, é um deles. Quando apareceu, no início da década de 50, em pleno confronto das grandes potências – Estados Unidos e União Soviética - ou no contexto da “guerra fria”, a discussão em torno dele foi mais para o plano dos acontecimentos políticos, de que se aproveitou a indústria do anticomunismo, alimentada pelo macarthismo, promovido pela direita americana, como hoje ocorre com o combate ao terrorismo, que seu autor, vítima, pelo outro lado, do irracionalismo soviético, à frente o premiê Nikita Kruschov, terminou por recusar, sob a ameaça do “apparatichik”, o supremo galardão a que todo escritor de renome aspira – o Nobel de Literatura. Seu autor foi impedido de recebê-lo, pessoalmente, pois, caso o fizesse, jamais poderia retornar a seu país. Lembro-me, à época, da carta comovente que ele dirigiu a Kruschov, pedindo-lhe permissão para deixar o país e receber o prêmio, acolhida com um gelado silêncio, enquanto o aparato de segurança da NKVD, secundado pelos áulicos e os cretinos das letras, que os há em toda parte, o acusavam de traidor, tentando, além do mais, destruir-lhe a obra-prima. Esta do lado de cá, chegou a ser elevada ao mesmo nível de Guerra e Paz, de Tolstoi, autor que ele diz haver conhecido em menino e por quem nutria a mais viva admiração. Mas deixemos para lá essa página negra da história contemporânea e vamos tentar dar àquele admirável livro, dos melhores que já li, o seu merecido destaque. Levado à tela, resultou num grande filme, em que se destacaram as figuras de Omar Sharif, como Yuri Jivago, Julie Christie, sua amante, como Lara ou Larissa, e Geraldine Chaplin, como a esposa do médico, no papel de Tonia.

Mário Vargas Llosa, que além de grande romancista é também um excelente ensaísta, como o demonstra em seu estudo sobre Flaubert – A Orgia Perpétua, um dos melhores já realizados sobre o autor de Madame Bovary, dedica-lhe um capítulo especial, em seu novo livro de ensaios, A Verdade das Mentiras (Editora Arx, S. Paulo, 2004, tradução de Cordélia Magalhães), em que focaliza as figuras exponencias do romance, no século passado, como Conrad, Thomas Mann, Joyce, John dos Passos, Virgínia Woolf, Fritzgerald, Hermann Hesse, William Faulkner, Aldous Huxley, André Marlraux, Graham Green, Albert Camus e outros.

O livro pretende ser um painel da revolução bolchevique e das alterações profundas que ela trouxe à sociedade russa.

“Como acontece com o cidadão comum, diz-nos aquele autor, a quem o destino apresenta o duvidoso privilégio de viver uma convulsão histórica, os personagens - e o leitor – de Doutor Jivago, ficam com freqüência desorientados e cegos sobre o que acontece. Porque somente a distância, e depois de passar por uma peneira do tempo e da razão e da pena dos historiadores, a história mostra uma ordem e um sentido. Quando ela é vivida, acrescenta o autor de Conversación em la Catedral, como ocorre com Lara, Tonia, Jivago  e, inclusive, seres mais importantes ou mais beligerantes que eles, como Antipov, ou Komarovski, a história é somente ‘de som e de fúria’, do verso de Shakespeare.” (Ob. cit. p. 304)

No entanto, seguindo de perto a interpretação daquele ensaísta, sem essa história confusa que os aturde e os despedaça, não seriam o que são a vida de seus personagens. “Esse é o tema central do romance, acrescenta o autor de Guerra do Fim do Mundo, o que reaparece de vez em quando, como  leitmotive, ao longo de sua tumultuada história: a falta de defesa do indivíduo diante da história, sua fragilidade e impotência, quando se vê no redemoinho dos grandes acontecimentos.” (Ob. cit., idem)

Ao contrário de Tolstoi, Vitor Hugo e Malraux, “grandes romancistas do heróico”, que atingem sua grandeza superando-se aos acontecimentos e estando quase sempre à altura deles, no mundo de Pasternak ou de Jivago, que não é sequer um herói, na acepção plena do termo, mas talvez mesmo um anti-herói, como os há de sobra na literatura universal, ou mesmo na nossa, como os anti-heróis, de Graciliano Ramos, se obtém a grandeza tentando preservar os valores essenciais contra as novas convenções sociais decorrentes da tormenta revolucionária, como a busca do amor, da verdade, do espírito de criação, ou lutando por certos códigos de conduta que incluam a espiritualidade e a fé.

Essa a tragédia do Doutor Jivago, que num mundo dividido e confrontado pelas ideologias pouca gente viu. Essa também a tragédia de Boris Pasternak e de seu grande livro.   

 




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