M. Paulo Nunes
Há romances que têm
uma história pessoal e uma história literária e artística. Às vezes a primeira
é tão importante quanto a segunda. Discutem-se muito mais as peripécias de sua
trajetória pública, do que seus aspectos estéticos, como o estudo dos
personagens, o estilo, em suma, os elementos intrínsecos de sua construção
romanesca. A primeira, às vezes tem tanta força que eclipsa sua estrutura
interna.
O Doutor Jivago,
do russo Boris Pasternak, é um deles. Quando apareceu, no início da década de
50, em pleno confronto das grandes potências – Estados Unidos e União Soviética
- ou no contexto da “guerra fria”, a discussão em torno dele foi mais para o
plano dos acontecimentos políticos, de que se aproveitou a indústria do
anticomunismo, alimentada pelo macarthismo, promovido pela direita americana,
como hoje ocorre com o combate ao terrorismo, que seu autor, vítima, pelo outro
lado, do irracionalismo soviético, à frente o premiê Nikita Kruschov, terminou
por recusar, sob a ameaça do “apparatichik”, o supremo galardão a que todo
escritor de renome aspira – o Nobel de Literatura. Seu autor foi impedido de
recebê-lo, pessoalmente, pois, caso o fizesse, jamais poderia retornar a seu
país. Lembro-me, à época, da carta comovente que ele dirigiu a Kruschov,
pedindo-lhe permissão para deixar o país e receber o prêmio, acolhida com um
gelado silêncio, enquanto o aparato de segurança da NKVD, secundado pelos
áulicos e os cretinos das letras, que os há em toda parte, o acusavam de traidor,
tentando, além do mais, destruir-lhe a obra-prima. Esta do lado de cá, chegou a
ser elevada ao mesmo nível de Guerra e Paz, de Tolstoi, autor que ele
diz haver conhecido em menino e por quem nutria a mais viva admiração. Mas
deixemos para lá essa página negra da história contemporânea e vamos tentar dar
àquele admirável livro, dos melhores que já li, o seu merecido destaque. Levado
à tela, resultou num grande filme, em que se destacaram as figuras de Omar
Sharif, como Yuri Jivago, Julie Christie, sua amante, como Lara ou Larissa, e
Geraldine Chaplin, como a esposa do médico, no papel de Tonia.
Mário Vargas Llosa,
que além de grande romancista é também um excelente ensaísta, como o demonstra
em seu estudo sobre Flaubert – A Orgia Perpétua, um dos melhores já
realizados sobre o autor de Madame Bovary, dedica-lhe um capítulo
especial, em seu novo livro de ensaios, A Verdade das Mentiras (Editora
Arx, S. Paulo, 2004, tradução de Cordélia Magalhães), em que focaliza as
figuras exponencias do romance, no século passado, como Conrad, Thomas Mann,
Joyce, John dos Passos, Virgínia Woolf, Fritzgerald, Hermann Hesse, William
Faulkner, Aldous Huxley, André Marlraux, Graham Green, Albert Camus e outros.
O livro pretende
ser um painel da revolução bolchevique e das alterações profundas que ela
trouxe à sociedade russa.
“Como acontece com
o cidadão comum, diz-nos aquele autor, a quem o destino apresenta o duvidoso
privilégio de viver uma convulsão histórica, os personagens - e o leitor – de Doutor
Jivago, ficam com freqüência desorientados e cegos sobre o que acontece.
Porque somente a distância, e depois de passar por uma peneira do tempo e da
razão e da pena dos historiadores, a história mostra uma ordem e um sentido.
Quando ela é vivida, acrescenta o autor de Conversación em la Catedral,
como ocorre com Lara, Tonia, Jivago e,
inclusive, seres mais importantes ou mais beligerantes que eles, como Antipov,
ou Komarovski, a história é somente ‘de som e de fúria’, do verso de
Shakespeare.” (Ob. cit. p. 304)
No entanto, seguindo
de perto a interpretação daquele ensaísta, sem essa história confusa que os
aturde e os despedaça, não seriam o que são a vida de seus personagens. “Esse é
o tema central do romance, acrescenta o autor de Guerra do Fim do
Mundo, o que reaparece de vez em quando, como leitmotive, ao longo de sua tumultuada
história: a falta de defesa do indivíduo diante da história, sua fragilidade e
impotência, quando se vê no redemoinho dos grandes acontecimentos.” (Ob. cit.,
idem)
Ao contrário de
Tolstoi, Vitor Hugo e Malraux, “grandes romancistas do heróico”, que atingem
sua grandeza superando-se aos acontecimentos e estando quase sempre à altura
deles, no mundo de Pasternak ou de Jivago, que não é sequer um herói, na
acepção plena do termo, mas talvez mesmo um anti-herói, como os há de sobra na
literatura universal, ou mesmo na nossa, como os anti-heróis, de Graciliano
Ramos, se obtém a grandeza tentando preservar os valores essenciais contra as
novas convenções sociais decorrentes da tormenta revolucionária, como a busca
do amor, da verdade, do espírito de criação, ou lutando por certos códigos de
conduta que incluam a espiritualidade e a fé.
Essa a tragédia do Doutor
Jivago, que num mundo dividido e confrontado pelas ideologias pouca gente
viu. Essa também a tragédia de Boris Pasternak e de seu grande livro.