M. Paulo Nunes
Os saraus
literários na Academia, em que se transformaram as manhãs de sábado, uma sorte
de réplica do chá das quintas-feiras de nossa Academia maior, a Brasileira, têm
suscitado inúmeras discussões, não apenas literárias, mas também de idéias, que
às vezes extrapolam para outros locais, ou se tornam matéria de nossa imprensa
para aqueles que escrevem habitualmente nos jornais da capital.
Uma dessas
discussões de que participei diz respeito à afirmação que ali fiz, ponto de
vista este que continuou mantendo, de ter sido Manuel Antônio de Almeida o
criador do romance brasileiro, em razão da publicação, de seu único romance Memórias
de um Sargento de Milícias, uma espécie de romance realista “avant
la lettre”, em nossa literatura. Esta publicação foi feita inicialmente através
do folhetim do Correio Mercantil do Rio de Janeiro, entre 1851-1852, e depois
impressa em dois volumes, um em 1853 e outro, em 1854, sob a assinatura de “um
brasileiro”.
A afirmação
contrária postula em favor de Joaquim Manuel de Macedo, autor de A
Moreninha, publicado em 1844, seguido de outros romances seus, tido à época
como importantes, mas de pouca significação hoje em dia para nossa
romancística, a julgarmos pela contribuição que lhe possam ter trazido.
Além do mais, a
julgar pelos parâmetros de nossa história literária, A Moreninha, não
pode ser considerada ainda um romance, mas em verdade uma crônica romanesca,
sequer do Rio de Janeiro, mas da ilha de Paquetá, com as suas “intrigas em
torno de sinhazinhas casadoiras dos sobrados, dos desníveis de situação
econômica, de questão de herança e de família”. Enquanto o outro, o livro
admirável de Manuel Antônio, ou Maneco, como era conhecido, talvez tenha
cometido, àquele tempo, “a imprudência de voltar-se para a gente anônima das
ruas, das zonas pobres da cidade, para a patuléia: gente, que nem sequer tinha
nome completo, era a ‘comadre’, o ‘compadre’, a parteira – Luizinha, Leonardo
Pataca, a Maria-da-Hortaliça, Vidinha, Maria Regatada, José Manoel, o mestre de
rezas, sacristãos, padres de vida suspeita, malandros, tocadores de vida –
maior parte vivendo não se sabe de que, de biscates, de arranjos, de sobras das
mesas bem providas”, como acentua o prefaciador da edição de 1957, (Coleção L
& PM Pocket, de Porto Alegre).
Temos aí assim esse
livro marcante que lembra, em alguns aspectos, um outro grande romancista
colocado um tanto à margem nas histórias da literatura brasileira, Lima
Barreto. Em alguns aspectos foi ele um antecipador de Machado de Assis, como já
se apontou, não apenas na concepção de seus personagens, com a figura
do”Agregado”, que constitui um capítulo neste romance e no Dom Casmurro,
daquele romancista, como também na criação de personagens femininos.
Veja-se nesse
romance a figura de Luizinha que sem possuir os “olhos de ressaca” da
insuperável criação machadeana, traz-nos à lembrança o retrato de Capitu,
namoradeira e dissimulada. Ou, como diria o romancista, Marques Rebelo: “Sem
ter os olhos de ressaca, movediça e leve, era uma formidável namoradeira essa
irmã mais velha de Capitu.”
Destaque-se nesse
admirável romance antecipador a figura do implacável major Vidigal, delegado de
polícia da capital, o tipo mais popular daquele tempo, o “tempo do rei”, como o
narrador evoca a época de D. João VI. Dela foi este autor o admirável
painelista, com a diferença de que, ao invés de retratar a nobreza reinol, que
expulsa de Portugal pelos exércitos de Junote, aqui aportou com seus
privilégios, fixou ao contrário, os quadros da vida tumultuosa, varia e difícil
da “arraia miúda”. É assim o primeiro romance a antecipar a presença do povo em
nossa literatura, como o faria, a partir da década de 30, o romance de
documentação social da vida brasileira de que temos falado nessas notas, com o
retrato do outro Brasil.
Há que destacar
ainda em Manuel Antônio o estilo saboroso e a técnica narrativa ou novelesca
que tanto o aproximam do mestre das Memórias Póstumas de Brás Cubas,
seja pelo estilo direto com que se aproxima do leitor como se com ele estivesse
conversando, seja pelo apuro formal e o sabor popular,ou ainda na antecipação
pelo que seria uma das vertentes da nossa literatura, a do romance citadino.
Trata-se, assim, de
um precursor e de uma das figuras marcantes da literatura brasileira, em seus
primórdios. Com ele são definidos o caráter e o perfil definitivo do romance
brasileiro que se afirmaria com Alencar e acima de tudo, com Machado de Assis,
a partir de suas obras fundamentais da segunda fase – Memórias Póstumas de
Brás Cubas. Nunca é demais evocar-lhe assim a grandeza impecável e a função
renovadora.