M. Paulo Nunes
Confesso que fiquei preocupado quando tive a incumbência que me foi
cometida pelo autor para “prologar”, como diria Jorge Luís Borges, a respeito
deste novo livro de Dagoberto Carvalho Jr. Isto não apenas pelo fato de muito
já haver escrito sobre ele, mas especialmente por tratar-se hoje em dia de um
escritor cujo “destino literário“ há muito já está definido entre nós, digo
entre nós, não apenas no Piauí, mas em nosso país e além fronteiras, graças ao fato
de haver Dagoberto escrito obras de considerável importância sobre o autor de A
Cidade e as Serras, título este de sua bibliografia retirado justamente do
livro que lhe fornece a informação e o motivo do título da obra ora em exame: Da
Janela de Tormes.
Falei acima em “destino literário” e não em “carreira literária” para
estabelecer claramente a disntinção entre esses dois termos:
Em suas “Conversações” com Borges, sua biógrafa, a inteligente e culta,
além de bela figura de mulher, Maria Esther Vasquez, (Borges, sus dias e su
tiempo (Javier Vergara Editor, 1999), a uma pergunta desta sobre o fato
auspicioso do lançamento de suas Obras Completas (acho que em sua
primeira edição) responde o autor de Ficciones:
“- Sí. Dije que
era una fecha importante en mi destino literario. No dije carrera literaria,
porque no creo que la haja, salvo para quienes no son escritores”.
E conclui:
“... Pero, el destino del
escritor, precisamente, es lo contrario del trabajo, ya que, fuera de los
preliminares agradables que son la lectura y el escribir libros y romperlos, lo
demás se hace más bien distrayéndose, dejándose llevar por ideas que pueden ser
cuentos o poemas o, en la mayoría de los casos - de mi caso – no son nada,
porque se disuelven antes.” (Ob. cit., p. 114)
No meu caso particular e em relação a Dagoberto Carvalho, há tempo venho
acompanhando o destino literário desse escritor que a velha Oeiras nos deu, de
forma a mais dadivosa possível, como nos daria Clodoaldo Freitas, OG Rego de
Carvalho, Expedito Rego, e quantos mais, toda uma galeria de figuras estelares
de nossa cultura.
Desde que li, ainda na década de 70, quando cumpria meu voluntário
exílio brasiliense, pelas mãos do nosso saudoso presidente Arimathéa Tito Fº,
sua História Episcopal do Piauí, pude sentir de perto a grandeza de um
historiador e de um escritor de peso e medida.
Depois disso, ao ser ele contaminado pela “filoxera”,ou pela mania
eciana, como diria Vergílio Ferreira, alguns livros de peso foram acrescidos à
bibliografia eciana no Brasil – como A Cidadela do Espírito – Considerações
sobre a arte sacra na obra de Eça de Queiroz, talvez a única a tratar do
tema na bibliografia do autor dos Maias; Eça de Queiroz – Retratos
da Memória; Revolução pela Palavra, sobre o qual já me manifestei ao
fazer-lhe a apresentação na Academia, destacando-lhe sobretudo o magnífico
estudo sobre a geração portuguesa de 1870, enfim, é um trabalho atento e
minucioso que não pára nunca, porquanto até suas notas e comentários de
imprensa que constituem a 3ª parte do livro, são permeados pelo espírito e a
mania eciana, de que temos o exemplo vivo neste livro com que ora mais uma vez
nos brinda sobre o “pobre homem de Povoa de Varzim”. Até quando? Deus é quem
sabe.
Da Janela de Tormes se poderá dizer que é o livro mais afim com o
ecianismo do autor de Passeio a Oeiras. Porquanto reúne ele nesta obra,
o que lhe faltava da influência de Eça no Brasil, sem esquecer o Piauí. É
constituído da notável conferência que nos encantou a todos, queirosianos ou
não, para usarmos uma expressão tipicamente portuguesa do seu agrado, no III
Salão do Livro no Piauí, de que foi um dos oradores convidados, a que acresceu
o discurso proferido, em nome da Academia, no centenário de nascimento do poeta
Luiz Lopes Sobrinho, seu conterrâneo de Oeiras, nascido embora no Ipiranga,
quando ainda integrava a velha urbe, e de uma outra parte comporta de pequenas
notas, ensaios e estudos, publicados na imprensa de Pernambuco ( no caso o
velho Diário de Pernambuco) a que vem sendo fiel de muito tempo a esta
parte, e ainda no Piauí e em Vila do Conde, em Portugal, traduzindo assim, além
do seu ecismo, o universalismo dessa personalidade de exceção, como certa vez
já o dissemos, na tribuna de nossa Academia, ao fazer-lhe a apresentação de A
Revolução pela Palavra, pouco antes de submeter-me a delicada cirurgia que
por pouco não me fez contemplar o outro lado do mistério, de que fala o Braz
Cubas.
Na primeira parte, ou seja, a conferência, verdadeiro ensaio sobre a
“Influência de Eça na Literatura Brasileira”, faz-nos o historiador da Escola
do Recife – Reflexos no Piauí, revelação das mais surpreendentes,
como a devoção do poeta Zito Baptista ao culto do autor do Primo Basílio,
contendo, inclusive, lúcidas e pertinentes observações sobre o estilo plástico
de Eça, capaz de levá-lo a modificar a língua portuguesa quando ainda o velho
idioma de Castilho e Herculano não era capaz de fornecer-lhe o vocábulo novo
que pudesse perfeitamente traduzir uma nova idéia, descobrindo-o no francês ou
mesmo no inglês, como ocorreu com o verbo “entrevistar”, trazido de lá, o
que levava os puristas de seu tempo a
dizer que ele esbandalhou o português (não sei bem se é esta a expressão
correta) para escrever em francês. Além daquele inspirado poeta, autor do
primoroso poema “Monólogo do Cego” e jornalista do Jornal do Brasil,
também ali inclui os notáveis escritores contemporâneos de Zito (exilado
cultural no Rio) Miguel Rosa, que ocuparia o governo do estado, Abdias Neves,
admirável polígrafo e autor de um romance de costumes, nos moldes do realismo
eciano, quando menos pelo seu sentido anticlerical, Um Manicaca, que
retrata Teresina dos fins do século passado, e outros mais. Dentre eles há que
referir também Clodoaldo Freitas, uma das mais perfeitas figuras de intelectual
de nossa terra, um dos fundadores e primeiro presidente da Academia Piauiense
de Letras e ainda figura de renome entre nós, da famosa Escola do Recife, cujo
sesquicentenário transcorreu a sete de setembro do corrente ano, sem nenhuma
pompa ou circunstância.
A ele se deve a idéia de erguer-se uma estátua, em nossa terra, ao autor
da Correspondência de Fradique Mendes, se não me falha a má memória.
Interessante ainda nesta 1ª Parte do livro vem a ser a discussão do
episódio entre Eça e Machado de Assis, a propósito da publicação do Primo
Basílio e da contundente crítica de Machado a alguns aspectos da obra,
de modo especial à crueza do seu realismo. Pois, Dagoberto coloca muito bem o
assunto, ao lembrar o fato de haver sido este mesmo realismo que teria levado
Machado a evoluir do romantismo de sua primeira fase romanesca ao realismo da
segunda, a partir das Memórias Póstumas de Braz Cubas, quando realiza as
suas obras-primas: Dom Casmurro, Quincas Borba, Memorial de
Ayres, em que a análise da condição humana assume as suas formas
mais contundentes.
Não vamos deter-nos noutros aspectos deste ensaio revelador, senão
teríamos que realizar outro estudo paralelo e não é nosso propósito faze-lo,
pelo menos agora.
Aqui
apenas pretendemos, por enquanto, chamar a atenção do leitor inteligente para
esses aspectos que reputamos de suma importância nesta nova obra de Dagoberto.
Terminariam
aqui as considerações breves, mas por enquanto preliminares, a respeito do novo
livro de Dagoberto. Não poderia fazê-lo, entretanto, sem vinculá-lo à pessoa
humana que ele é.
Um
escritor famoso já o disse que não podemos separar a obra do autor que a
escreve, de tal modo estará ela vinculada a sua biografia. De tal maneira
ocorre este fenômeno que todo livro, seja de que gênero for, constitui um resumo
da vida, do autor, uma espécie de opera mea, como diria Borges. Assim é
que seus personagens, no caso de um romancista, ou suas idéias ou suas posições
políticas, no de um ensaísta, lembram a personalidade de seu criador. Isto, com
certeza teria levado Flaubert a traduzir a sua experiência pessoal de
romancista, na famosa frase: “Madame Bovary sou eu”.
É
este caráter de identificação profunda com o que escreve que traz a presença
viva de Dagoberto para os seus escritos. Seja na biografia, seja no ensaio, no
retrato ou na pequena crônica, está ele aí vivo, movimentando com as mãos de
mestre, como se fora o regente de uma orquestra, as figuras do seu cenário,
seja na vida, multiforme e variada que nem a sua, seja na literatura, através
da escolha que faz de seus modelos de escrita literária, como no caso de Eça de
Queiroz. Lê-lo é assim movimentar um cenário largo e enriquecedor, servido por
um estilo versátil e elegante, como das melhores coisas de ver-se.
Previdentemente,
o autor de Janela de Tormes, um dos títulos mais felizes com que
ultimamente já me defrontei, sabendo do meu incontido desejo de falar e de
escrever, reservou três páginas apenas na formatação do livro para que eu
pudesse sobre ele ”prologar”, senão seria capaz de ir mais longe, e ao invés de
dar uma idéia do livro, escrevesse sobre ele um ensaio paralelo. Foi
providencial que o autor assim o fizesse para que o encanto de lê-lo não viesse
a ser prejudicado pela ausência de brilho das pobres palavras do prefaciador
que aqui se escusa de não estar exatamente à sua altura.