M.
Paulo Nunes
Dentre os modernos escritores portugueses já lidos, de
fio a pavio, destacaria Vergílio Ferreira, com quem se correspondeu o autor
desta nota, pouco antes de seu silêncio, Ferreira de Castro, que se abrasilaria
um pouco com A Solva, cuja ação decorre na Amazônia, no início do século
passado; Fernando Namora, Augustina Bessa-Luís, com Advinhas de Pedro e Inês,
retomado um vetusto assunto que vem da Idade Média portuguesa – os amores
infelizes de D. Pedro e D. Inês de Castro, e da biografia do Marquês de Pombal,
Vitorino Nemésio, por conta de sua obra-prima Mau Tempo no Canal, já
comentada nestas notas, fixar-me-ia de modo especial, em Miguel Torga e
Saramago, que não chegaram a conhecer-se, segundo depõe este, mas possuem
alguns traços em comum, quais sejam a rebeldia, a ironia ácida ou o sarcasmo
peninsular, a independência de caráter. Talvez pelo fato de haverem nascido em
pequenos burgos do interior, Torga, em São Martinho de Anta, Saramago, em
Azinhaga, ambos são dotados de um temperamento agreste que a cada passo se
reflete na obra que escreveu aquele e este vem dando ainda o acento definitivo.
Miguel Torga, pseudônimo de Adolfo Coelho da Rocha, que
era médico de profissão, completará em 2007 seu centenário de nascimento. É bom
que assim antecipemos um pouco o seu julgamento.
De sua obra vasta há que destacar-se o Diário,
cuja leitura acompanhamos até o XIV volume, um misto de poesia, moralismo e
crítica, publicado às suas próprias expensas e com apresentação gráfica das
mais modestas. Como contista foi um dos maiores de nossa literatura e de seu
tempo, com os Contos da Montanha (1941) e os Nonos Contos da Montanha
(1943), em que alia ao regionalismo uma profunda comunhão com a natureza,
extraindo de seu meio personagens que parecem rescender o “húmus”da terra. Seu
grande romance autobiográfico – A Criação do Mundo (1937-39)
possui uma singularidade: o fato de que a ação dos dois primeiros volumes
decorre quase toda no Brasil, onde o autor passaria a infância e parte da
adolescência.
Em nota sobre seu necrológico, datada de 17 de janeiro de
1995, em seus Cadernos de Lanzarote – III (Editorial Caminho, Lisboa,
1996), assim o retrata o autor de Memorial do Convento;
“Sempre se morre demasiado cedo. Miguel Torga
sai do mundo aos 87 anos, depois de uma longa e dolorosa doença. Dirão os
piedosos que foi um alívio para ele, os resignados que já vivera bastante, os
pragmáticos que a sua obra estava feita. Todos têm razão, nenhuma a tem toda -
se a minha opinião serve para alguma coisa. Porque há uma diferença entre estar
morto Torga e estar Torga vivo. Talvez ele já não tivesse muito para dizer;
chega sempre o momento em que a energia da palavra se esgota. Além disso,
sabemos que a morte não poderá apagar nenhuma das palavras que escreveu. O que
extingue a vida e os seus sinais, não é a morte, mas o esquecimento. A
diferença entre morte e vida é essa. O que conta para nós, neste caso, é outra
diferença muito mais humana: a diferença entre estar e não estar. Podia Torga
não escrever uma linha mais – mas estava aí. E agora deixou de estar.
“Não conheci Miguel Torga. Nunca o procurei, nunca lhe
escrevi. Limitei-me a lê-lo, a admirá-lo muitas vezes, outras não tanto. Foi só
de leitor a minha relação com ele. Algumas vezes, nestes últimos tempos, os
nossos nomes apareceram juntos, e sempre que tal sucedia não podia evitar o
pensamento de que o meu lugar não era ali. Por uma espécie de superstição
induzida pela pessoa que foi e pela obra que criou? O motivo é certamente muito
mais subtil do que aquele que se poderia deduzir de um mero balanço de
qualidades suas e defeitos meus. Achava que havia em Torga algo que eu gostaria
de ter, e não tinha: o direito ganho por uma obra com uma dimensão em todos os
sentidos fora do comum, a música profunda de uma sabedoria que nascera com a
vida e que à vida voltara, para se tornarem, ambas, mais ricas e generosas. Que
Torga não era generoso, dizem-me. Mas eu falo de outra generosidade, a que se
entranha nesse movimento de vaivém que em raríssimos casos une o homem à sua
terra e a terra toda ao homem.
“Demasiado cedo morreu Miguel Torga. Compreendo agora
quanto gostaria de tê-lo conhecido. Demasiado tarde.” (Ob. cit. pp.21-22)