M. Paulo
Nunes
Os jornais de 29 de abril passado noticiaram a morte, na comunidade dos
irmãos de Foucauld, em Toulouse, na França, aos 91 anos de idade,do filósofo
Jacques Maritain.
Para as novas gerações, mais preocupadas com o fato político, elevado ao
primeiro plano das angustiantes inquietações dos trágicos dias que vivemos ou
mergulhadas no utilitarismo desta civilização tecnocrática, sem nenhum respeito
pela essencial dignidade do ser humano, o nome do célebre filósofo de Meudon
talvez pouco signifique.
Para minha geração, entretanto, aquela que emergiu para a vida pública
após a hecatombe da Segunda Guerra Mundial, a figura de Maritain muito tem a
dizer.
Não é ele apenas o líder espiritual, o criador do neotomismo, que em sua
obra ganha dimensões novas, a partir dos ensaios Reflexions sur
l’Inteligence e Degrés du Savoir, obras em que desenvolve uma
metafísica cristã fundada no realismo crítico, até os de sua última atividade
filosofante, em que induz à participação do homem no contexto social e revela
um senso profundo das realidades da história, fase a que pertencem Religion
et Culture e o famoso Humanismo Integral, de tão larga repercussão
no Brasil
Não é somente o suscitador de um novo humanismo, o inspirador das novas
posições políticas que, através da chamada política da main tendue,
levaria às mais diferentes formas de democracia social e cristã dos dias
atuais, para escândalo daqueles que têm horror ao filósofo e escritor
participantes.
É Maritain sobretudo o ponto de encontro da mais profunda e comovedora
renovação espiritual do século, na linha de Bergson, de Leon Bloy, seu padrinho
de batismo, de Charles Péguy, o peregrino do absoluto, de Ernest Psichari, o
famoso neto de Renan, morto como Péguy, nas trincheiras da Primeira Grande Guerra,
de Raïssa, sua mulher, autora daquele magnífico depoimento - As Grandes
Amizades -, de Georges Bernanos, que
entre nós conviveu longamente em seu retiro de Cruz das Almas, de
onde escreveu a sua famosa Letres aux Anglais, ou do nosso
Tristão de Athayde, empenhado a fundo no trabalho de divulgação do pensamento
do filósofo.
Com Maritain tomei contacto, em meus verdes anos, através de um
opúsculo, hoje talvez pouco lembrado, mas de significativo conteúdo profético,
em sua obra memorável – O Crepúsculo do Ocidente. A ele seguir-se-ia a
leitura do célebre e apaixonante Noite de Agonia em França, de que se
destaca o monumental prefácio de Tristão de Athayde, que também o traduziu para
nossa língua. Dele me aproximaria mais ainda pelo seu famoso Humanismo
Integral, de tamanha influência em minha geração, a que se seguiria a
leitura de Os Direitos do Homem, cujo aparecimento haveria de provocar a
famigerada polêmica com os jesuítas.
Se pudéssemos enfocá-lo por um aspecto apenas de sua personalidade
multiface – e isto se tornaria empresa temerária tratando-se de um espírito
numeroso e vário como o de Maritain, diríamos que a característica essencial do
autor de Questions de Conscience foi a ansiosa procura da verdade, a
ponto de haver realizado um pacto de morte com sua companheira Raïssa, no caso
de não encontrarem um sentido para a vida, gesto trágico de que os salvaria o
providencial encontro com o autor de La Femme Pauvre.
Esta procura o levaria primeiro ao Bergsonismo, em cujas famosas
conferências na Sorbonne viria conhecer a companheira de toda a vida e
partícipe de seu drama espiritual. Mais tarde, retificaria Bergson, fazendo-lhe
uma severa crítica em seu livro de estréia La Philosophie Bergsonienne,
ao tempo em que procurava encontrar na tradição tomista a solução dos problemas
filosóficos do angustiado mundo moderno.
Mas,
como filosófo cristão, como neotomista, não se desligaria Maritain das questões
mais cruciantes do mundo contemporâneo. Haja vista sua participação efetiva no
episódio da Guerra Civil Espanhola –
sabido como é que a “questão espanhola” foi de fato uma questão européia,
condenando com veemência a impostura do franquismo, que se escudava na
hipócrita defesa dos valores da civilização cristã.
Isto lhe valeu, por toda a vida, a condenação dos
bem-pensantes, a que se associou a dos fanáticos da Action Française, que lhe
acarretaria a pecha de violento.
De tal modo suas atitudes públicas, inspiradas na mais pura
autenticidade de sua fé cristã, constituíram um escândalo para os obscurantistas,
que a estes causaria surpresa a carinhosa acolhida que lhe dispensou Pio XII,
no Vaticano, quando ali chegava, em 1945, como embaixador de De Gaulle.
É assim Maritain um tema permanente de debate que não pode esgotar-se em
um breve registro, que apenas pretende dar um depoimento pessoal e recolher as
primeiras impressões da emoção pública que traz o desaparecimento do maior
filósofo cristão do nosso século.
A igreja pós-conciliar muito lhe deve na antecipação em adotar posições
as mais consentâneas com o desafio dos novos tempos.
Talvez esse fato tenha inspirado ao Papa Paulo VI, que se considera seu
discípulo e de quem Maritain recusaria o chapéu cardinalício, num gesto de
profunda humildade, aquelas palavras memoráveis, ditas recentemente perante uma
multidão de 30 mil peregrinos, ao evocar a vida de Santa Teresa, a primeira
doutora da Igreja:
“Outra voz também nos atrai hoje para um texto inédito que diz: cada
professor busca ser, na medida do possível, exato e bem-informado em sua
disciplina. Mas é chamado a servir a verdade de modo mais profundo. É um fato
que lhe pedem que ame, acima de tudo, a verdade, como o absoluto a que se
consagrou inteiramente. Se é cristão, ama a Deus em pessoa. Quem fala assim é
Maritain, morto ontem em Toulouse.”
“Na
verdade, Maritain foi um grande pensador de nosso tempo, um mestre na arte de
pensar, de viver e de orar. Morreu só e pobre, associado aos irmãozinhos de
Jesus, do Padre de Foucauld. Sua voz e sua figura ficarão na tradição do
pensamento filosófico e na meditação católica. Não esquecemos a sua última
visita a esta praça, no fechamento do Concílio, para saudar os homens de
pensamento, em nome de Cristo, nosso
Mestre.”
(Publicado no Correio
Braziliense, de 5.05.1973, por ocasião da morte de Maritain, e ora republicado
nesta coluna, numa homenagem ao centenário da conversão do filosófo ao
catolicismo.)