M. Paulo Nunes
A
vida intelectual de cada um de nós constitui uma espécie de “corsi i ricorsi”,
como diriam os italianos, em que as preocupações intelectuais vão e vêm,
conforme o fluxo momentâneo de nossas paixões, de nossos interesses ou às vezes
de nossas divagações como puros espíritos. Assim, no curso de nossas vidas, que
no meu caso agora de aproxima de “la ultima vuelta del camino”, como diria o
romancista Pio Baroja, vão e vêm essas preocupações, dependendo, às vezes, ora
de um livro que nos surpreende, ora de uma conversa marcante, ora mesmo do
tédio de viver que às vezes nos assalta e faz com que o afastemos com a
releitura de um autor de nossa preferência que, no meu caso particular, são
muitos, porquanto sempre fui um leitor compulsivo com uma inesgotável
curiosidade intelectual.
Às
vezes ocorre comigo (deve ocorrer também com a maioria das pessoas que me
ouvem) de olhar pesaroso para uma ruma de obras recém-adquiridas e fustigar-me
o remorso de ainda sequer as ter folheado, o que dá à gente uma sensação de um
dever não cumprido.
André
Maurois, em suas Memórias, que li
ainda na adolescência, no período da segunda Guerra Mundial, quando se
refugiara nos Estados Unidos fugindo à fúria de Hitler contra os judeus e
contra a inteligência,no momento em que os seus livros se tornaram verdadeiros
“best-sellers”, a partir do sucesso de Os
Silêncios do Coronel Bramble, que praticamente o lançaria na grande
literatura, Maurois dizia que quando vivia na província francesa trabalhando
numa empresa de sua família, mas, com um permanente interesse intelectual,
interesse a que ele dava curso à noite, depois das tarefas diárias, com suas
leituras ou com suas tentativas de escrever alguma coisa, contemplava à
distância, com verdadeira veneração, aqueles que se constituíam nos luminares
da cultura francesa que à época (bons tempos aqueles) era a cultura universal
que incorporávamos à nossa formação.
Josué
Montello, há pouco desaparecido e agora objeto de nossa evocação, em um de seus
últimos livros, editado pela Academia Brasileira de Letras, Reencontro com Meus Mestres (2003) fez
aquilo que todos nós desejaríamos também fazer, ou seja, recensear as
influências dominantes em sua formação intelectual, mediante o repasse dos
autores com os quais se encontrou ao longo da vida. Para mim isto constituiria
tarefa difícil. Primeiro, por não possuir as qualidades fundamentais de um
grande escritor (valha a modéstia, que não é falsa). Depois, por não dispor
daquele poder de síntese do autor de Os
Tambores de São Luís, e imitá-lo
em sua forma sucinta de resumir com sua lúcida interpretação fatos e
personagens de nossa vida intelectual.
Assim,
além daqueles autores basilares em nossa formação intelectual, ou seja, na
formação intelectual de minha geração,ou ainda na minha preparação para o
magistério da nossa língua, esta “última flor do Lácio inculta e bela”, como
diria Bilac, hoje desgraçadamente tão maltratada, teria que enumerar também
aqueles que, e foram inúmeros - pensadores, sociólogos, historiadores, romancistas,
críticos literários, tanto da nossa quanto das outras culturas afins, fui
descobrindo e adotando como leitura obrigatória ao longo da vida, ou ainda os
que davam o tom à cultura brasileira em nossos dias e seriam assim nossos
contemporâneos.
Na
Fundação Getúlio Vargas, quando ali participei de um curso opcional sobre cultura brasileira
com que suavizava um pouco a aridez das aulas do curso de administração pública
que ali realizara, ministrado por especialistas estrangeiros, assisti a um
verdadeiro desfile de personalidades dos mais variados campos e matizes de
nossa vida mental, como Alceu Amoroso Lima, Anísio Teixeira, Sobral Pinto,
Gustavo Barroso, um dos melhores conferencistas que já ouvi, Sobral Pinto,
Afonso Arinos de Melo Franco, Castro Rebelo, Lourenço Filho, como Anísio
Teixeira, um dos renovadores de nossa educação e outros tantos que a memória
infiel não pôde reter. Leitor de muitos deles, foi aquele um momento de alegria
e de reencontro.
Com
Anísio Teixeira, por exemplo, eu me reencontraria inúmeras outras vezes, não
apenas pela leitura de seus admiráveis livros de análise do fenômeno
educacional brasileiro, com o seu denso prefácio ao livro de Dewey – Educação e Democracia, como no antigo
Conselho Federal de Educação, na Associação Brasileira de Educação, em suma,
nos principais fóruns de educação do país. Baixinho, magro, elétrico, lembrando
em seu perfil o ator Procópio Ferreira,
era uma inteligência em ebulição permanente, marcada pelo toque da genialidade.
Que grande e inesquecível figura humana e o quanto me ajudou em minha labuta de
servidor da educação pública!
Por
que estou aqui agora a evocar esse passado e essas figuras? Sinceramente não
sei.
Talvez,
(quem sabe?) pelo desejo inconsciente de
retorno ao passado, porquanto todos nós somos seres permeados de lembranças,
guardadas intactas em nossa memória involuntária, prontas a deflagrar a
qualquer momento, à maneira do autor de Em
Busca do Tempo Perdido, e tentar
perfazer com ele, através de sua obra monumental, aquela parábola por ele
vivida. Partindo do Caminho de Swann,
passa pelo Caminho de Guermantes,
namora À sombra das Raparigas em Flor, por
Albertina Desaparecida, por Sodoma e Gomorra, para concluir com o Tempo Reencontrado. É nesta parte que o
autor dessa epopéia heróicômica, como a
denominou o crítico Álvaro Lins, em um dos melhores estudos que sobre o
romancista já se fizeram, depois de viver intensamente a vida dos salões
aristocráticos e a sua decadência, com a ascensão da nova classe, a burguesia
francesa do final do século XIX, assume com ele mesmo o propósito de revivê-los
numa obra de arte, aquele que seria um dos maiores romances da literatura
universal. Então abandona para sempre a vida mundana e só reaparece muitos anos
após, com a obra concluída.
Nós
outros também, seus leitores devotos, ao ler o último capítulo desse livro
admirável, voltamos ao começo para relê-lo, uma duas, três, dez vezes que seja
ou a vida inteira, que esta é bastante
curta para lê-lo durante toda a existência, como deveríamos fazer com os
autores tocados pela graça da genialidade, seja ele um Marcel Proust, um Eça,
um Machado de Assis, um Graciliano Ramos, um
Jorge Luis Borges, um Mário Vargas Llosa, uma Vírgina Woolf, um José
Saramago, um Josué Montello.
Mas
falemos de Josué Montello, que é o nosso tema central. Não vou fazer-lhe a
análise da obra que é vasta e incomensurável e seria fastidioso para a seleta
assistência que me ouve. Quero apenas delimitar-lhe os pontos mais sensíveis de
sua romancística ou de sua visão de mundo, como ensaísta, memorialista,
biógrafo e estudioso dos problemas
brasileiros nas mais diferentes áreas do conhecimento, além de ter sido ele
dedicado servidor público, como educador, como diplomata,como administrador,
diretor da Biblioteca Nacional e do Museu Histórico Nacional, do Museu da
República, por ele organizado no antigo Palácio do Catete e presidente do
Conselho Federal de Cultura, em má hora extinto pela incompreensão de um
governo divorciado de nossos problemas culturais, felizmente de curta duração. Instituição
aquela, o Conselho Federal de Cultura que, com a sua competência, ajudou ele a
criar e a dar-lhe feição definitiva em 1966, como expressão mais alta da
cultura brasileira.
Não
me lembro de quando data a nossa aproximação que foi para mim bastante
enriquecedora. Li-o todo, um pouco sem método, de fio a pavio. Hoje encontro em
minhas estantes poucos livros seus. Inclusive os de sua prosa diarística a que
sempre recorro e me fazem assim muita falta. Talvez pelo afã de estender sua
leitura ao maior número de pessoas eu os tenha emprestado além da conta. E
emprestar livros, diz a sabedoria popular, é uma forma de perdê-los.
Comecemos
pelo romancista, gênero a que porfiadamente se dedicou. Quando iniciou a
publicação de seus romances, a começar por Janelas
Fechadas, em 1947, já o modernismo, com o chamado romance de 30, havia
praticamente delimitado suas fronteiras, na literatura brasileira. Os livros
definitivos dessa fase, tais os do ciclo da cana de açúcar, de José Lins do
Rego, como Fogo Morto, uma obra-prima;
os do ciclo do cacau, de Jorge Amado,como Terras
do Sem Fim e Gabriela, Cravo e Canela;
os do ciclo da seca como A Bagaceira, de
José Américo de Almeida, Vidas Secas,
outra obra-prima de nossa literatura, de Graciliano Ramos, Os Corumbas, de Amando Fontes, O
Quinze, de Rachel de Queiroz, já haviam sido todos publicados e o romance de 30 havia dado seu
recado. Com eles se faria a renovação estética de nossa literatura, ao
incorporar novos temas à romancística brasileira.
Josué
Montello preferiu dar continuidade a outra temática em nosso romance, a do
romance urbano, que vem de Manuel Antônio de Almeida, com Memórias de um Sargento de Milícias,
um livro que considero fundador de nossa prosa romanesca, uma vez que Teixeira
e Sousa, que o precedeu, não tem a força narrativa, a intensidade e a vivência
desse grande romancista com os problemas de nossa nacionalidade em formação.
Seguem-no, ainda no romantismo, Joaquim Manuel de Macedo, José de Alencar, cuja
temática é mais abrangente, Machado de Assis, o modelo entre todos, Lima
Barreto e Marques Rebelo, todos eles romancistas do Rio de Janeiro, e Érico
Veríssimo, no Rio Grande do Sul.
Quanto
a essa forma de romance já a ele se referia, em seu tempo, o mestre Machado de
Assis, ao apontar, com muita propriedade, suas características fundamentais, no
ensaio primoroso que nos leva aos primórdios de nossa crítica literária,
“Instinto de Nacionalidade”. Ali nos diz o autor de Dom Casmurro:
“O
romance brasileiro recomenda-se especialmente pelos toques do sentimento,
quadros da natureza e de costumes e certa viveza de estilo mui adequada ao
espírito do nosso povo. Há em verdade ocasiões em que essas qualidades parecem
sair da sua medida natural, mas em regra conservam-se estremes de censura,
vindo a sair muita coisa interessante, muita realmente bela. O espetáculo da
natureza, quando o assunto o pede, ocupa notável lugar no romance,e dá páginas
animadas e pitorescas, e não as cito por me não divertir do objeto exclusivo
deste escrito, que é indicar as excelências e os defeitos do conjunto,sem me
demorar nos pormenores.” E continua;
“Pelo
que respeita à análise das paixões e caracteres são muito menos comuns os
exemplos que podem satisfazer à crítica; alguns há, porém, de merecimento
incontestável. Esta é, na verdade, uma das partes mais difíceis do romance, e
ao mesmo tempo das mais superiores.Naturalmente exige da parte do escritor
dotes não vulgares de observação que, ainda em literaturas mais adiantadas, não
andam a rodo nem são a partilha do maior número.” (M. de Assis, Obra Completa, III vol.Aguillar Editora,
p. 805)
O
autor de Quincas Borba aflora ai um
aspecto fundamental de nossa romancística, qual
seja, a do romance espetáculo,
inclusive pelo seu paisagismo, como
o caracteriza o romancista português Vergílio Ferreira, fundado entre
nós por Alencar, e o romance psicológico, aquele que propõe um problema, como é
o caso de Machado de Assis, a partir das Memórias
Póstumas de Braz Cubas, q ue inicia a fase renovadora de sua obra.
As duas tendências
podem juntar-se em vários romancistas, como no próprio Machado, em Lima
Barreto, em Graciliano Ramos, em Josué Montello, para citar apenas os que no
momento me vêm à lembrança.
No
caso particular do romancista de que estamos tentando aqui esboçar o perfil,
aquelas duas tendências – a do romance social e a do romance problema,
poderemos surpreender, não somente em seus livros de reconstituição histórica a
exemplo ao já citado Os Tambores de São
Luis, como também em Os Degraus do
Paraíso, A Décima Noite e Viagem sem Regresso. Aliás, segundo o
crítico Wilson Martins, todo romance histórico é também um romance psicológico.
De fato, lembramo-nos aqui também do caso de Eurico, o Presbítero, de
Alexandre Herculano, o criador desse gênero na literatura portuguesa. Neste
romance, ao lado do drama social da invasão dos mouros, na península ibérica,
que a ocuparam por oito séculos, há a tragédia pessoal de Eurico, que se
tornaria presbítero de Cartéia, e sua paixão por Hermengarda, a qual não se
consuma em virtude da fidelidade daquele aos seus votos sacerdotais que o
catolicismo antitridentino do autor não aceitava. Naquele e nesses últimos são
abordados os problemas da conversão religiosa do catolicismo ao protestantismo,
que foi o caso do pai do romancista. Este aspecto é tratado em seu romance com
a densidade que me lembram alguns romances ou récits de André Gide, como ele os denominava, e ainda o da
exigência da virgindade antes do casamento,como preceituava um dos artigos do
nosso antigo Código Civil, tornado perempto com a revolução sexual das últimas
décadas do século passado, que constitui o tema central de A Décima Noite, e o homossexualismo feminino, um tema até então
pouco explorado no romance brasileiro, em A
Viagem sem Regresso.
Seguindo
essa tendência,a do romance urbano, Josué Montello se converte num dos maiores
romancistas brasileiros, não só em termos de efabulação da narrativa, como
ainda na de construtor de um romance urbano novo, embora conservando aquelas
características essenciais da nossa romancística citadina, na linha do genial
Machado de Assis, que reconstitui entre nós a sociedade do 2º Império, como já
o definiu muito bem o crítico Astrojildo Pereira em um dos primeiros estudos
enfocando esse tema.É tão importante esse estudo de Astrojildo – “Machado de Assis,
Romancista do 2º Império”, que a partir daí ninguém mais estudaria o autor de Memórias Póstumas, como um escritor
divorciado dos problemas da sociedade do seu tempo de que tanto o acusavam.
Quanto
á técnica romanesca por ele adotada, vejamos sua própria opinião expressa no Diário da Tarde,em nota de 1º de outubro
(1957), ao instalar-se em Madri, em função diplomática, ainda no início de sua
carreira literária:
“A Décima Noite, começado em Lisboa, será
continuado aqui.Tenho comigo o tema, as figuras, o cenário, mas não sei ainda
se irei encontrar a difícil conciliação da tradição narrativa com as técnicas
modernas, que pretendo seja o meu caminho. Ora vou para um lado, ora vou para o
outro, no porfiado esforço para realizar-me como romancista. Porque sinto em
mim, imperativa, teimosa, a vocação para o romance.”(Ob. cit. p. 35)
Josué
Montello, como já o disse noutro lugar, inicia assim por esse caminho a sua
trajetória de romancista, dos maiores de nosso país e de nosso tempo, ao
reconstituir, como diria Alexandre Herculano, o “viver e o crer das extintas
gerações” de uma cidade das mais representativas do país que aí se constitui
como que num microcosmo da sociedade brasileira, São Luis do Maranhão. E assim
nos lega uma obra monumental, em que não são poucos os momentos de grandeza,
através de obras que hoje integram o patrimônio daquela cidade, com a sua
paisagem histórica, patrimônio que são da cultura brasileira. Dentre elas
merece especial destaque Os Tambores de
São Luis, a sua obra-prima, por nela haver fixado a história da escravidão
negra no Brasil, na segunda metade do século XIX, em um de seus locais de maior
presença. Através do velho Damião, fixa ele o perfil de três gerações de
afro-descendentes. Iniciando-se a trama quando vai o protagonista assistir ao
nascimento do neto, reconstitui o autor, no espaço de um dia, à maneira do Ulisses, de Joyce,a vida e os mores de
uma comunidade das mais ricas em valores humanos, fértil em acontecimentos e
episódios que fundamente a marcam no decurso do tempo. Com este romance, dos
maiores que produziu a nossa história literária, incorpora ele à literatura
brasileira o problema da escravidão negra no país, com as protelações
sucessivas de uma sociedade injusta como aquela dos senhores de baraço e cutelo
que eram os senhores de escravos e seus agentes na vida nacional e no
Parlamento do Império. As procrastinações sucessivas de suas leis inúteis, como
a dos sexagenários e a do ventre livre que apenas adiavam o problema, mereceriam do Pe. Antonio Vieira aquela denúncia
terrível contida no famoso Sermão da
Primeira Dominga da Quaresma, por ele transcrita na abertura do romance: “Ah
fazendas do Maranhão, que se esses mantos e essas capas se torceram, haviam de
lançar sangue!” A Noite sobre Alcântara, outra obra-prima sua, com que reconstitui
a cidade histórica do outro lado da baía de São Marcos, Os Degraus do Paraíso, O
Largo do Desterro, Cais da Sagração
e outros tantos constituem também as mais perfeitas realizações literárias no
domínio da arte romanesca daquele que, pelo estilo literário, certamente se alteia até Machado de Assis, de
quem é um devotado estudioso, e aos cânones da língua portuguesa. Não é apenas meu este juízo. Manuel Bandeira
já disse ser esta a primeira qualidade de Josué Montello, revelada desde as
primeiras linhas. Uma escrita que como a de Machado de Assis, parece passada a
limpo. Como diria ainda Alceu Amoroso Lima, com os seus romances, “a exemplo de
José de Alencar, vai abarcando, aos poucos toda a sociedade brasileira.”
Em
sua prosa diarística, em que também se revela um mestre inexcedível, na mesma
linha dos autores desse gênero de prosa, como Frederico Ariel, em seu Diário Íntimo, traçou o mais completo
painel da vida literária e social brasileira de que se tem notícia entre nós,
constituída dos volumes Diário da Manhã,
Diário da Tarde, Diário do Entardecer, Diário
da Noite Iluminada, mais de três mil páginas dedicadas à nossa vida
literária.
A
esse painel não poderia faltar também o ensaísta e o biógrafo, com os livros
Memórias Póstumas de Machado de Assis,
Aluísio Azevedo e a Polêmica d’O Mulato, O Presidente Machado de Assis, entre outros, além de inúmeros outros ensaios e
estudos como O Caminho da Fonte, Uma Palavra Depois da Outra, com que
enriqueceu no gênero a bibliografia brasileira. Além desses convém ainda
assinalar a presença do contador de histórias e fatos anedóticos da vida
literária, como os que integram o Anedotário
Geral da Academia Brasileira, em
que se revela o fino ironista que mereceria estudo à parte.
Na obra de Josué
Montello parece-nos explicitar-se admiravelmente aquele conceito de José
Saramago expresso em sua prosa diarística, de homerização do romance que ele gostaria que fosse não um gênero
literário “mas um lugar capaz de acolher, são palavras suas, toda a experiência
humana, um oceano que receberia, e onde de algum modo se unificariam as águas
afluentes da poesia, do drama, da filosofia, das artes, das ciências.”(Cadernos de Lanzarote II, p. 212,
Companhia das Letras)
É
um conceito este, o do romance como a moderna epopéia, que venho difundindo, em
meus escritos, e adquirido desde o tempo remoto de professor de literatura no
Liceu e na Faculdade de Filosofia e que recolhi em Franz Werfel, em seu belo
livro em louvor do milagre de Lourdes, A
Canção de Bernadete, publicado
nos Estados Unidos, ao tempo da Segunda Guerra Mundial, quando seu autor fugia
da perseguição nazista aos judeus e que li por indicação do saudoso Monsenhor
José Luis Barbosa Cortez, meu professor de latim no velho Liceu e pessoa da
minha particular estima.
Vou concluir, meus
senhores e minhas senhoras, para não cansá-los tanto. Não esgotamos o assunto,
é claro, apenas o abordamos perfunctoriamente, esperando que outros o completem
com mais autoridade e maior competência.
E
concluo, com um episódio referido em seu Diário
da Tarde, em nota de 9 de outubro (1957) ao retomar sua atividade docente
no Instituto de Cultura Hispânica, em Madri, para onde fora transferido a seu
pedido depois de um desentendimento com o então titular da Embaixada do Brasil em
Lisboa, escritor Álvaro Lins, onde se encontrava o autor na condição de adido
cultural.
Demos-lhe
aqui a palavra para narrar aquele episódio:
“Como
já fazia algum tempo que eu não dava aula, pude viver, de mim para mim, a
emoção de Dom Miguel de Unamuno, na residência de estudantes, na Universidade
de Paris, ao tempo de seu exílio.
Convidado
por George Duhamel, Unamuno foi fazer uma palestra para jovens estudantes. Ao
defrontar-se com os moços, na sala de aula, sentiu a palavra retida na
garganta, enquanto seus olhos se umedeciam; logo se curvou sobre as mãos
espalmadas. Com um gesto Duhamel pediu silêncio à classe. E Unamuno, daí a
momentos, descobrindo o rosto molhado:
- Vocês me perdoem
a emoção do velho professor. Já fazia algum tempo que este mestre exilado não
tinha a oportunidade de dar uma lição. Obrigado por este silêncio.
As
palmas ressoaram, e Unamuno, reapossando-se de si mesmo, começou a sua aula.”
E conclui aquela nota o autor de O Labirinto de Espelhos;
“No anfiteatro do
Instituo de Cultura Hispânica, diante de alunos, de convidados, de companheiros
da Embaixada, senti também a garganta contrair-se. Esperei um momento. Arrumei
no descanso do púlpito minhas notas. E abri minha lição contando aos meus
amigos, aos meus companheiros, o que se havia passado com Unamuno, fora da
Espanha, e que eu também estava vivendo, naquela sala, longe de meus alunos
brasileiros.
Está
claro que não dei, nem poderia ter dado, a aula que Unamuno deu em Paris. Mas
tive minhas palmas, assim que recordei a emoção do mestre espanhol.” (Ob. cit. p. 43)
Obrigado a todos pela paciência.
( Palestra proferida na Academia Piauiense
de Letras, na sessão dedicada a Josué Montello, em 6 de maio de 2006)