M. Paulo Nunes
Deveria esta nota ter como titulo “Di
Cavalcanti em dois tempos”, sobre o admirável fixador de retratos de mulatas na
história da pintura brasileira, que com ele ganha uma dimensão que poucos
tiveram ao tratar do mesmo tema.
“Por mais fiéis que fossem os retratos
de Di Cavalcanti, é assim que Josué
Montello começa a nota de 27 de outubro (1976), de seu Diário do Entardecer,
nem um deles se pareceria tanto com o modelo
quanto as suas caricaturas. Porque esses retratos, acrescenta o
romancista., fixados ao vivo, na imobilidade do flagrante ou da pose,
conservariam algo de caricatural na figura inconfundível” (0b. cit., p. 768)
Diz o autor de Degraus do Paraíso
que numa de suas viagens a Paris, encontrou-se com o pintor em seu ambiente
natural, ou seja, a rua. Não uma rua qualquer daquela cidade, mas uma rua
típica do Quartier Latin, “grave na sua velhice, boêmia nos seus transeuntes,
como à espera de outros romances de Balzac”, conforme suas palavras.
Segurando-o pelo braço, em tom
imperativo, disse-lhe o pintor:
- Você vai almoçar comigo.
- Já almocei.
- Torna a almoçar.
E lá foram os dois “Boulevard Saint
Germain acima, na direção do Boulevard Saint Michel, donos da tarde, senhores
da rua, impelidos pelo passinho do
pintor e poeta. De repente, numa esquina, paramos.
“E ele, como a banhar-se na onda humana que passava por nós:
- Veja isto, é como a nossa Lapa, nas melhores tardes. A cada instante,
uma mulher bonita. Principalmente mulatas, cheias, repletas, a nos chamarem
para a cama. Agora, pergunto a você: - Como é que se pode deixar de ser pintor
com tanta mulher bonita? Impossível. A vontade
que eu tenho é agarrar todas elas, aos bandos, e atirá-las para a tela, como num delírio,
depois de atirá-las para a cama, como um bode. (Ob. cit.,
p.769)
Outra observação do pintor, alongando o
olhar para uma ruazinha estreita que se torcia na direção do cais do Sena, com
aquele ar que possuem todas as ruas de Paris.
“- Veja aquela rua. Não quer sair dali.
Segue para o cais, dando volta sempre a se torcer, querendo voltar. Paris é
isto. É esta felicidade civilizada. Esta cor. Este movimento. Veja bem: os
carros não buzinam, para não espantar esta harmonia.”
“ E grave, segurando-me os dois braços:
- Será que Deus sabe que isto é assim?
Ou continua pensando que o Paraíso é lá?”
E os
dois lá se foram para o Chez Catherine, onde se deparam com uma senhora,
“também gorda, e extrovertida, que se atirou nos braços do pintor, como se
quisesse entrar, com os restos da beleza contente, num de seus mais belos
quadros”. (Ob. cit., idem)
E
concluiu o autor aquela nota, com um tom de melancolia, a mesma melancolia que
nos assalta toda vez que reconstituímos, pela memória involuntária, um dos
quadros de nosso passado, guardado intacto na lembrança.
“ E eu pergunto a mim mesmo, conclui a
nota, com a memória desse encontro em Paris:
- Como admitir que nesta hora, neste
Rio de Janeiro ensolarado, estejam levando o querido Di Cavalcanti, de olhos
fechados, mãos atadas, visivelmente aborrecido, para o Cemitério São João
Batista? (Ob. cit., idem)