M. Paulo Nunes
Uma história que reflete à perfeição o caráter dúbio de certas ações
humanas também ocorre nas atitudes das pessoas mais sensíveis e foi este o procedimento adotado pelo crítico e
historiador José Veríssimo, um dos luminares de nossa história literária, em
relação a Euclides da Cunha, como noticia Josué Montello, em seu livro já aqui
citado, Uma Palavra depois da Outra, na crônica a que intitulou “José
Veríssimo: Cara ou Coroa”.
O autor de Contrastes e Confrontos vinha de obter uma das maiores
consagrações literárias com a publicação de seu livro monumental Os Sertões,
em 1902, obra basilar da sociologia brasileira e de caráter seminal na
interpretação do Brasil.
“Na esteira desse triunfo, diz-nos o autor de Os Tambores de São Luís,
abriram-se para o seu autor as portas da Academia, e esta o saudou pela palavra
de Sílvio Romero.” (Ob. cit. p. 45)
José Veríssimo, então o pontífice da crítica literária do país, saudou
aquele escritor com um dos mais calorosos elogios que então se fizeram ao autor
de À Margem da História de que pinça o romancista o seguinte parágrafo:
“O livro, por tantos títulos notável do Sr. Euclides da Cunha, é ao
mesmo tempo o livro de um homem de ciência, um geógrafo, um etnógrafo; de um homem
de pensamento, um filósofo, um sociólogo, um historiador; e de um homem de
sentimento, um poeta, um romancista, um artista, que sabe ver e descrever, que
vibra e sente tanto aos aspectos da natureza, como ao contato do homem, e
estremece todo, tocado até o fundo d’alma, comovido até as lágrimas, em face da
dor humana, venha ela das condições fatais do mundo físico, as secas que
assolam os sertões do Norte Brasileiro, venha da estupidez ou maldade dos
homens, como a Campanha de Canudos.”
Entretanto, esta parece ter sido apenas a atitude pública ou externa do
autor de Estudos de Literatura Brasileira sobre o incomparável autor de Os
Sertões.
Para Josué Montello, o verdadeiro juízo do crítico eminente, ele o teria
deixado na carta dirigida a Mário de Alencar, de 17 de agosto de 1909, dois
dias depois da morte trágica do épico de Os Sertões.
Transcreve
ele, a seguir, o trecho mais importante do precioso documento, àquela data
ainda inédito, “para contraste e confronto com as palavras de seu artigo”.
“Pobre Euclides! Apesar das aparências contrárias, creio que não havia
entre nós muito real simpatia, e que ambos nos esforçamos por nos tolerarmos, e
até nos amarmos, mais do que os nossos temperamentos e a nossa índole literária
diversa quereria. Penso que este esforço recíproco deve ser contado em nosso
favor e por isso não tenho nenhum vexame em confessá-lo a um amigo como você. -
Com toda a sua ingenuidade e simpatia real, o seu matutismo inveterado e às
vezes encantador, e algumas boas qualidades de caráter e creio também que de
coração, havia nele um egotismo que me era insuportável e me fazia talvez
julgá-lo às vezes com acrimônia ou injustiça. Pelo lado literário, você sabe
que eu não podia absolutamente estimá-lo senão com muitas restrições, e, ainda admirando-o
quanto podia, sempre achei excessiva a sua fortuna literária, que estou certo
não lhe sobreviverá muito tempo.” (Ob. cit. p. 46)
Como
admitir tamanhas restrições ao “lado literário” de Euclides ou “à sua fortuna
literária” em quem tão calorosamente exaltou de público, e a meu ver
justificadamente, uma obra que permanece de pé e altaneira, enquanto
silenciaram por completo todos aqueles que se opuseram ao autor de um dos
monumentos de nossa cultura? Mesquinharias da vida literária?
“De qualquer modo, conclui o romancista, aí estão
os dois lados da mesma moeda, dando-nos o testemunho de que nem sempre José
Veríssimo dizia de público, na sua crítica, o que pensava de livros e autores.”
(Ob. cit. p. 46)