M.
Paulo Nunes
No momento em que se tecem loas às excelências do sistema
de vida norte-americano, a propósito do bicentenário de nascimento de Aléxis de
Toqueville, autor do famigerado livro A Democracia na América, que já
contém o germe do desafio americano e do destino manifesto do Império para
impor a outros povos, a ferro e fogo, seu estilo de vida, desejo evocar a
tragédia de Hiroshima, em seu 60º aniversário, neste 6 de março, quando o
primeiro experimento atômico, lançado as 8 horas e 15 minutos de 1945, varria
da face da terra uma população inerme, numa cidade aberta, matando, em um
segundo, 140.000 pessoas, 40.000 das quais constituídas de crianças que se
encontravam já empenhadas em suas tarefas escolares. Após, esse dramático impacto
um outro tanto foi dizimada em conseqüência dos efeitos maléficos da irradiação
nuclear que continuou por vários anos.
Marcel Junot, representante da Cruz Vermelha
Internacional, assim conclui o seu relatório sobre aquela tragédia bíblia: “Ao
fim da tarde, o fogo começou a baixar, e não tardou a extinguir-se. Nada mais
havia a queimar. Hiroshima tinha deixado de existir.”
Três dias depois é a vez de Nagasaki, com 75
mil mortos imediatos, na maior parte crianças, mulheres e idosos. Deus salve a
América!
À época, várias soluções foram alvitradas para que o
Japão fosse formalmente advertido das conseqüências do uso daquele experimento
mortífero, por parte de vários cientistas que trabalhavam no chamado Projeto
Manhatan, como Oppenheim, sugerindo que se fizesse previamente a demonstração
numa ilha deserta perante autoridades japonesas. Nada disso, entretanto, foi
atendido. Por que? Àquela altura, o mundo já se encaminhava para o confronto da
Guerra Fria, que haveria de dominar todo o “breve século XX”, da concepção de
Hobsbawm. Vencida a Alemanha, em 8 de maio, os Estados Unidos da América se
alçavam ao ambicionado título de maior potência do planeta e aquela seria a
oportunidade de ouro para tal afirmação. Extinguiu de uma vez por todas as
pretensões da influência soviética sobre os povos dominados, embora com o
sacrifício da população de um país já militarmente vencido, cometendo assim um
dos maiores genocídios de que tem registro a história humana.
E para aqueles que não testemunharam o bárbaro episódio,
a exemplo do que já haviam feito os alemães da legião Condor, no episódio de
Guernica, na Guerra Civil Espanhola, fixado para sempre no admirável quadro de
Picasso que se encontra no Museu Reina Sofia, em Madri, ao lado do Museu do
Prado, lembremos que, numa cruel demonstração da insensibilidade americana para
com o destino dos povos, hoje em dia, 59% deles ainda aprovam o hecatombe, e o
mais surpreendente: a aeronave que conduzia a bomba se chamava “Enola Gary”,
nome da mãe do comandante da missão mortífera.
Hoje, Hiroshima, como que ressurgida das cinzas, é uma
cidade com 350.000 habitantes, com ruas tranqüilas, cheia de praças e jardins e
um população ordeira e trabalhadora, em busca de um futuro melhor. É um exemplo
vivo de convivência pacífica entre os homens. Mas, como no filme de Alain
Renais, Hiroshima, meu amor, não esquecerá jamais aquela ferida em sua
alma. A cidade antiga subsiste ainda como um retrato na parede, do poema de
Drummond: “mas, como dói!”
O primeiro-ministro japonês em um belo pronunciamento em
conclamou à conciliação dos povos à luta contra a ameaça atômica e o prefeito de Hrioshima, Tadatosha Akiba,
fez um dramático apelo para o abandono das armas nucleares. Possam os povos do
planeta, numa mobilização geral, escutá-los um dia. Assim seja!