M. Paulo
Nunes
Há escritores que permanecem um mistério para os leitores de sua época.
Marcel Proust, por exemplo, que trouxe talvez a maior contribuição à técnica do
romance contemporâneo, tem sempre em sua vida e em sua obra alguns desvãos que
os estudiosos não conseguiram até hoje desvendar. André Gide também a respeito
de quem há pouco escrevi, quando abordei o problema da teoria do romance, é
outro cuja vida e cuja obra continuam sob alguns aspectos impenetráveis. Charles
Morgan, igualmente de quem falei há pouco na Academia, a propósito de seu
romance fundamental – Sparkeanbrook que chegou a suscitar até um debate
filosófico, dadas as características daquele romance, de caráter platônico, de
cuja discussão Celso Barros foi a figura central.
Josué Montello, há pouco desaparecido e de quem falei, no dia
de seu desaparecimento, na sessão ordinária do Conselho de Cultura, para
prestar-lhe, pela sua passagem a homenagem de minha admiração, ao contrário de
todos os que aqui referi, se constitui sempre, ao longo de uma vida e de uma
obra das mais significativas de nossa literatura e da própria cultura
brasileira, uma personalidade translúcida.
Tendo estreado, Janelas Fechadas, em 1947, quando o chamado
romance de 30 ou de documentação social da vida nordestina ainda, era
considerado o grande repositório da vida brasileira, motivo de inspiração que
ainda era da geração subseqüente, como Norberto Sales, com Cascalho, por sinal
que um grande livro, ou o piauiense Permino Asfora, com Noite Grande e Fogo Verde, preferiu o autor de Labirinto
de Espelhos enveredas por outro caminho, o do romance urbano. Este já
possuía notáveis antecedentes em Manuel Antônio de Almeida, com as Memórias
de um Sargento de Milícias, que considero fundador da nossa romancística,
tal a força e o poder de expressão dessa narrativa, no romantismo, Joaquim
Manuel de Macedo, José de Alencar, como seus admiráveis perfis de Mulheres (Senhora,
Diva, Lucíola e tantos outros), Machado de Assis, o maior de todos eles,
Lima Barreto e Marques Rebelo.
Josué Montello inicia assim por esse caminho a sua trajetória de
romancística, dos maiores de nosso país e de nosso tempo, ao reconstruir “o
viver e crer”, como diria Alexandre Herculano de uma cidade das mais
representativas de formação social do Brasil, São Luís do Maranhão. E assim nos
lega uma obra monumental, em que não são poucos os momentos de grandeza,
através de obras que constituem hoje patrimônio daquela cidade, com a sua
paisagem histórica, patrimônio que são da cultura brasileira.Dentre elas
merecem especial destaque Os Tambores de São Luís, por nele haver fixado
a história da escravidão negra, no Brasil, em um de seus locais de maior
presença. Através do velho Damião, fixa ele o perfil de três gerações de afro-descendentes.
Iniciando-se quando vai o protagonista assistir ao nascimento do neto,
reconstitui no espaço de um dia a vida e os mo.... de uma comunidade das mais
ricas em valores humanos, fértil em acontecimentos e episódios que fundamente a
marcam no decurso do tempo. A Noite sobre Alcântara, com o qual
reconstitui a cidade histórica do outro lado da baia de São Marcos, outra
obra-prima sua: Os Degraus do Paraíso; A Longa Vida do Major Taborda,
Pedra Viva, e muitos outros. Constituem as mais perfeitas realizações
literárias no domínio da arte romanesca daquele que, pelo estilo literário,
certamente se alteia até Machado de Assis e aos cânones da língua portuguesa.
Aliás, não é minha apenas esta opinião. Manuel Bandeira já o disse ser esta a
primeira qualidade Josué Montello, revelada desde as primeiras linhas. Uma
escrita que como a de Machado de Assis, pouco passada a limpo. Ou a de Wilson
Martins ao considera-lo o único escritor contemporâneo aparentado com o autor
de Dom Casmurro.
Como diria Alceu Amoroso Lima, com os seus romances, “a exemplo de José
de Alencar, vai abraçando, aos poucos, toda a realidade brasileira.”
Mas não podemos deixar de referir nesta nota breve e de saudade a
presença do ensaísta e do memorialista. Neste traçou o mais perfeito panorama
da vida literária brasileira, com a sua prosa diarística, constituída dos
volumes Diário da Manhã, Diário da Tarde, Diário do Entardecer
e Diário da Noite Iluminada, cerca de três mil páginas dedicadas à nossa
história literária. Com a sua erudição, o seu “savoir faire” , a sua sabedoria, vai traçando, com mão de
mestre,todo um vasto painel da nossa história literária. A eles também se
incorpora o último e delicioso volume editado pela Academia Brasileira – Encontro
com Meus Mestres, o resumo de suas leituras fundamentais, ao recolher nele
a lição de seus mestres ao longo de sua formação literária.
A esse painel não poderia também faltar o ensaísta e o biógrafo com os
livros Memórias Póstumas de Machado de Assis, Aluísio de Azevedo e a
Polêmica d’ O Mulato e o Presidente Machado de Assis, em que
traça o retrato do Presidente da Academia Brasileira, que ele dirigiu em vida.
Talvez se entretanto do autor de saudade de O Baile de Despedida,
nesta hora de saudade, há que não esquecer sua pessoa humana das mais
fascinantes e agradáveis. Estive com ele, em várias oportunidades e jamais
esquecerei sua conversa enriquecedora e seu convívio educado. Era um dos
espíritos de maior encanto pessoal. É de louvar-se ainda como complemento de
sua vida pessoal, a figura de D. Yvonne Montello, sua doce companheira de toda
ávida. A última vez que com ele estive foi há cerca de três anos, no famoso
“chá das cinco” da Academia, antes da
conferência que ali iria proferir Celso Barros sobre o piauiense Deolindo Couto, em seu centenário de nascimento. Foi
este um instante raro do mais agradável convívio literário e afetivo que guardo
intacto na lembrança nesta hora de saudade do mestre encantador.