M. Paulo Nunes
O primeiro volume
dos Cadernos de Lanzarote, de José Saramago, reeditado pela Companhia
das Letras, em 1994, mantida por exigência do autor a ortografia portuguesa,
foi-me trazido, em uma de suas viagens a Brasília pelo velho amigo Celso
Barros. Por conta dessa gentileza perdeu o avião em que embarcaria, ficando
naquela cidade sem bagagens como Jacinto, o príncipe da Grã Ventura, e Zé
Fernandes, seu amigo, como nos conta o grande Eça em A Cidade e as Serras. Há ali uma nota do autor de Memorial do
Convento que me causou alguma impressão.
Com a data de 17 de
fevereiro (1995) diz-nos em seu diário aquele autor:
“A mim estas coisas
assombram-me, quase me deixam sem palavras, e desconfio que as poucas que
restam não serão mais apropriadas. O rapazito que andou descalço pelos campos
de Azinhaga, o adolescente de fato- macaco que desmontou e tornou a montar
motores de automóveis, o homem que durante anos calculou pensões de reforma e
subsídios de doença, e que mais adiante ajudou a fazer livros – e depois se pôs
a escrever alguns – esse homem, esse adolescente acabam de ser nomeados Doutor honoris
causa pela Universidade de Manchester. Lá irão os três em Maio, a receber o
grau, juntos e inseparáveis, porque só assim é que querem viver. Tão inseparáveis e juntos que, mesmo agora,
quando estou a procurar as palavras certas para deixar notícia do afago que me
fizeram, estou também de forquilha na mão a mudar a lama aos porcos do meu avô
Jerônimo e a rodar válvulas num torno de bancada. Benedetto Croce dizia que
toda a História é história contemporânea. A minha também.” (Ob. cit. p. 484)
Alguns amigos mais próximos vêm insistindo comigo para que
escreva as minhas memórias, mas a isto venho resistindo, na medida do possível.
Isto porque, como tenho escrito bastante (discursos acadêmicos, elogios e
principalmente artigos de idéias e de crítica literária), que regularmente
aparecem em jornais, livros e revistas literárias, excepcionalmente fora de
nossa terra, e a acreditar na opinião de Johan Wolfgang Goethe, todas as obras
que escrevemos até hoje nada mais são do que fragmentos sucessivos de uma
grande confissão. Então, muita coisa do
que eu poderia dizer nessas memórias já está implicitamente contida nesses
escritos.
Além do mais, quando se fala no assunto, sempre me lembro
daquela observação do velho Eça, num rasgo de falsa modéstia: sou como a
república de Andorra. Não tenho biografia.
Sobre o tema (memórias) o modelo que nos vem à mente são as Confissões
de Sto Agostinho e as de Jean-Jacques Rousseau, que deram ao gênero uma
dimensão universal.
Acresce que, como aqui já o dissemos, há que fazer-se a
necessária distinção, baseada em opinião idônea, no caso a do saudoso mestre do
romance brasileiro, Josué Montello, quando observa que a verdade histórica é
uma, nos diários, e outra, nas memórias. E cita o julgamento que faz o poeta
Paul Claudel, quando Embaixador da França, no Brasil, de uma das maiores figuras da cultura
brasileira, Rui Barbosa: numa, chamando-o de inseto, dado o seu aspecto físico
mirrado, e noutra, ou seja, em suas memórias, dando-lhe a reverência que merece
o seu papel de homem público e figura prominente de nossa cultura. Assim, o
mero acerto de contas, mesmo na prosa diarística, onde seria mais adequado, como
o fez o nosso Humberto de Campos, em seu Diário Secreto, talvez por ser
secreto, ao menos por algum tempo, não caberia a rigor num livro de memórias
que, pela sua natureza, não seria o veículo indicado para fazê-lo. Valha-nos o
exemplo do romancista citado de início, em seu Diário, e o celebrado autor do Anúncio
Feito a Maria (L’annonce fait a Marie), em suas Memórias.
Em nossa literatura o
modelo perfeito desse gênero literário continua sendo Minha Formação, de
Joaquim Nabuco, que podemos destacar a página antológica e de fato está ela em
todas as antologias do passado, Massangana, que fica ressoando em nossos
ouvidos para todo o sempre, como aquelas palavras do autor de Um Estadista
do Império, na obra em referência.
“De
todas essas impressões nenhuma morrerá em mim. Os filhos de pescadores sentirão
sempre debaixo dos pés o roçar das areias da praia e ouvirão o ruído da vaga.
Eu por vezes acredito pisar a espessa camada de canas caídas da moenda e escuto
o rangido longínquo dos grandes carros de bois...” (Ob. cit., p. 158 – edição
do INL).