M. Paulo Nunes
Ao visitar Portugal pela segunda vez,
em 1983, no terrível frio de fevereiro, para participar de um congresso de
professores de literatura de expressão portuguesa, também como convidado
especial, como da primeira vez, assisti, no Clube Ginástico Português, no
Chiado, a uma longa exposição do arquiteto Campos Matos, denominada “Imagens do
Portugal Queiroziano”, que depois resultaria num belo livro sobre Eça, com
aquela denominação. Campos Matos, que posteriormente se tornaria celebridade
eciana, mais uma das que existem em Portugal e no Brasil, autor ainda do famoso
Dicionário de Eça de Queiroz, viria ao Brasil por duas vezes, para
participar das comemorações promovidas no Recife e na cidade de Goiana, em suas
imediações, graças ao empenho do historiador piauiense e eciano ilustre,
Dagoberto Carvalho Jr., que já possui uma longa bibliografia sobre o autor dos Maias,
a primeira das quais para participar do sesquicentenário de nascimento e a
segunda, das comemorações alusivas ao centenário do silêncio do criador de
Fradique Mendes, no ano de 2000. Ocupa ele função de relevo na Sociedade dos
Amigos de Eça de Queiroz, criação originária do grande ensaísta pernambucano e
homem de idéias Paulo Cavalcanti, que acresceu à bibliografia eciana um livro
admirável, Eça de Queiroz, Agitador no Brasil. Hoje, Dagoberto a preside
com aquela elegância e competência que lhe são peculiares, e tem a ajudá-lo
figuras de renome, como o legendário engenheiro Pelópidas Silveira, ex-prefeito
do Recife e ex-vice governador de Pernambuco, nos tempos de Arraes, de
Gladstone Vieira Belo, diretor do Diário
de Pernambuco, de José Quidute e outras figuras gradas, e a que também
pertenceu o inolvidável mestre Fernando de Mello Freyre, de saudosa memória,
nome que evoco com a mais funda saudade e emoção, porquanto tivemos o
privilégio, minha mulher e eu, de privar de sua amizade, amizade esta que
esperamos continue na figura ímpar da grande mulher que lhe acompanhava os
passos, na aventura deste atormentado planeta, Maria Cristina, e esteve com
ele, entre nós, quando lhe prestamos a homenagem do Conselho de Cultura e da
Academia, com a realização do seminário sobre o centenário de nascimento do
mestre Gilberto Freyre. Também integra aquele seleto grupo de ecianos aí apenas
por gentileza dos amigos o obscuro autor desta nota.
Mas, história puxa história, e as do
Dagoberto são imensuráveis, pela pessoa que ele é e pelo cidadão digno, íntegro e correto que
sempre foi, e o meu objetivo nesta nota é colher, da prosa diarística de
Vergílio Ferreira, uma anotação sua sobre o velho Eça, que se dizia, talvez
para impressionar mais os seus leitores “um pobre homem de Povoa de Varzim” e,
por conseguinte, não tinha história, era como a república de Andorra.
Mas, vamos à
nota vergiliana que é datada de 6 de setembro do mesmo ano de 1982. Nela o
autor de Aparição fala da visita que fizeram, sua mulher Regina e ele,
ao famoso palacete de Neuilly, nos arredores de Paris, onde o criador de Carlos
da Maia e Ega residiria em Paris, ao final de sua carreira diplomática e de
seus dias, e na qual deslumbraria os amigos com a sua verve e a sua elegância,
um deles o nosso Eduardo Prado, que lhe serviria de modelo para o personagem
Jacinto, da Cidade e as Serras, e nem por isto foi ele preservado da
terrível explosão imobiliária que vem destruindo as nossas cidades, pelo que
vemos, não apenas as brasileiras. É o caso de invocar o velho ditado deles: “lá
e cá, más fadas há”.
“O facto é que não tenho falado do
acontecer diário. No equilíbrio da balança entre mim e os outros, começo eu a
pesar mais ou a pesar tudo. Em todo o caso. Ontem houve uma sardinhada em casa
dos Sena Rego, aqui nas Azenhas do Mar. Estavam os Campos Matos, ele um
arquitecto, fanático queirosiano. E como eu sofro da mesma maleita, embora já
menos aguda, palrámos proliferamente sobre o nosso grande homem. Campos Matos
percorreu todos os recantos onde Eça passou. Soube eu assim alguns lances que
ignorava. Por exemplo, antes de ir para Paris, Eça esteve ainda em Londres, ido
de Brístol. E soube ainda que a moradia de Neuilly fora arrasada para se
construir um prédio enorme de habitação. Fui há uns trinta anos a Neuilly. A
casa ainda lá estava. Morava lá então a filha do indivíduo que a ocupara depois
de Eça morrer. E como era freqüente a peregrinação de portugueses, a
mulherzinha já estava habituada. E mostrou-nos, à Regina e a mim, os três (?)
pisos da casa, que era quase um palacete, indicando-nos as divisões que
correspondiam à sala, aos quartos, ao escritório. Emocionei-me como era da
minha obrigação humana. Revi o Eça na sua escrivaninha alta, a invasão dos
filhos que o iam buscar para jantar, as reuniões com os seus amigos, a
instantânea presença de todo um passado que morreu e eu tinha na imaginação.” (Ob.
cit., p. 107.)