M. Paulo Nunes
Aquela “Semana terível”, que marcaria tão fundamente os moradores do
Ramalhete e os seus habituais freqüentadores durante aqueles dois últimos anos
e começa com a revelação trazida ao conhecimento da família pelo Sr. Guimarães,
o famoso tio do Damaso, residente em Paris, e íntimo de Maria Monforte, mãe de
Maria Eduarda, também causaria aos leitores d’Os Maias, a mais funda impressão.
O episódio culminante daquele drama foi a morte de Afonso, encontrado pelo
Baptista, ao fundo, ao pé da cascata, unto à mesa de pedra, e descrito pelo
autor da maneira mais discreta e mais singela possível:
“Afonso da Maia lá estava, nesse recanto do quintal, sob os ramos do
cedro, sentado no banco de cortiça, tombado por sobre a mesa, com a face caída
entre os braços. O chapéu desabado rolara para o chão; nas costas, com a gola
erguida, conservava o seu velho capote azul. Em voela, nas folhas das camélias,
nas abas areadas, refulgia, cor de ouro, o sol fino de Inverno. Por entre as
conchas da cascata o fio de água punha o seu choro lento.” (Ob. cit. p. 411)
Incumbido por Carlos de comunicar o fato a Maria e tomar com o Vilaça
todas as providências para o seu retorno
imediato a Paris, Ega escreveu-lhe a seguinte mensagem, enviada imediatamente à
sua residência, à rua de São Francisco : “Minha Senhora. O Sr. Afonso da Maia
morreu esta madrugada, de repente, com uma apoplexia. V. Exa. compreende que,
neste momento, Carlos nada mais pode do que pedir-me para eu transmitir a V. Exa.
esta desgraçada notícia. Creia-me, etc.”
O resto das diligências coube a Ega, por incumbência de Carlos,
transmitir a Maria, e ele o fez de forma atabalhoada, como quem tem pressa em
cumprir uma missão dolorosa e difícil,
com a revelação de toda aquela tenebrosa história, de que somente agora, graças
às surpreendentes revelações do Sr. Guimarães, os seus protagonistas tomavam
conhecimento, para concluir afinal: “E nas primeiras palavras que disse (o Sr.
Guimarães), imagine o assombro de todos, quando se entreviu que V. Exa. era
parenta de Carlos e parenta muito chegada.”
Entregou-lhe e, seguida o cofre contendo os papéis de Maria Monforte,
com a declaração do próprio punho, reconhecida por Maria Eduarda, de ser esta
neta de Afonso da Maia, o que elimina quaisquer dúvidas sobre o seu nascimento.
“Agora, só mais duas palavras, acrescentou Ega, ao fim daquele doloroso
encontro. Carlos pensa que o que V. Exa. deve fazer já é partir para Paris. V.
Exa. Tem direito, como sua filha deve ter, a uma parte da fortuna desta família
dos Maias que agora é a sua... Neste maço que lhe deixo esta uma letra sobre
Paris para as despesas imediatas. O procurador de Carlos tomou já um
vagão-salão. Quando V. Exa. decidir partir, peço-lhe que mande um recado ao
Ramalhete para eu estar na ga.......
Creio que é tudo. E agora devo deixá-la.
“Agarara rapidamente o chapéu,
veio tomar-lhe a mão inerte e fria:
“Tudo é uma fatalidade! V. Exa. É nova, ainda lhe resta muita coisa na
vida, tem a sua filha, a consolá-la de tudo... Nem sei lhe dizer mais nada! (Ob. cit. p. 430)
No dia seguinte, em companhia do Vilaça, na Estação de Santa Apolônia,
“Ega correu para Maria Eduarda, conduziu-a pelo braço em silêncio, ao vagão –
salão que tinha todas as cortinas cerradas, junto do estribo ela tirou devagar
a erva. E muda, estendeu-lhe a mão.
“- Ainda nos vemos no Entroncamento. – Eu sigo também para o Norte.” (Ob. cit. p. 433)
Alguns curiosos pararam ao ver sumir-se, naquela carruagem de luxo,
fechada, com ar de mistério, uma senhora que parecia tão bela, de ar tão
triste, coberta de negro. E apenas Ega fechou a portila do vagão, o Neves, da
Tarde e do Tribunal de Contas, tomou-lhe o braço com sofreguidão:
- Quem é?
-
“Ega amontou-o pela plataforma para lhe deixar cair
ao ouvido, já muito adiante:
- Cleópatra!
O político, furioso, ficou rosnando: “Que asno!”
Vilaça também ficou deslumbrado com aquela figura de Maria Eduarda, “tão
melancólica e nobre. Nunca a vira antes e parecia-lhe uma rainha de romance.”
“- Acredite o amigo, fez-me impressão! Caramba, bela mulher! Dá-nos uma
bolada, mas é uma soberda praça!” (Idem)
No entroncamento Ega veio bater-lhe nos vidros do salão que se
conservava fechado e mudo. Trocaram poucas palavras.
“-Vai para o Porto? Murmurou ela.
- Para Santa Olávia.
- Ah!
Então Ega balbuciou, com os beiços a tremer:
- Adeus.
Ela apertou-lhe a mão com muita força, em silêncio, sufocada.
“... À porta do bufete voltou-se ainda, ergueu o chapéu. Ela, de pé
moveu de leve o braço num lento adeus. E foi assim que ele, pela derradeira vez
na vida, viu Maria Eduarda, grande, muda, toda regra na claridade, à portinhola
daquele vagão que para sempre a levava.” (Ob. cit., p. 434)