M. Paulo Nunes
O velho Cineas
Santos que me proporciona diariamente belas lições de vida (é a vantagem da
idade provecta) já me revelou certa vez o seu processo de leitura de obras de
estreantes que costumam solicitar-lhe o seu juízo e o seu endosso como crítico,
ao que escrevem. Se se trata de poesia, por exemplo, que é o pecado predileto
dos nossos “plumitivos”, ele geralmente escolhe para leitura um poema no começo
do livro um, no meio, e outro, no fim do livro. Se a obra puder resistir a esse
teste de esforço, está com meio caminho andado para sua aprovação. Graciliano
Ramos, ao que se diz, procedia de maneira mais radical. Se, em duas olhadelas o
livro não lhe agradava, rasgava os originais e jogava-os na lata de lixo.
É evidente que não
procedo dessa forma com os livros em relação aos quais pedem meu desvalioso
parecer. Às vezes os leio pela metade, outras, se se trata de obra que se possa
ter como recomendável, vou até o fim. Outras vezes, ou por falta de tempo ou mesmo
por negligência, sequer os leio. Mas, nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Às
vezes nos surpreendemos com revelações de primeira ordem, como já tenho
assinalado,vez por outra, nestas notas.
Lembra-me aqui o
caso do velho Tristão de Athayde com o famoso livro de estréia, na ficção, de
José Américo de Almeida, A Bagaceira, livro que provocou uma revolução
literária no país, que foi o romance modernista de 30 ou de documentação social
da realidade brasileira.
Tristão conta que
começou a lê-lo no bonde, na volta para casa, com a maior má vontade.
Tratava-se de um livro mal impresso, saído das oficinas da Imprensa Oficial da
Paraíba que deveria àquela época ser um horror em matéria de impressão gráfica.
Mas logo no início da leitura começou a interessar-se pela obra, terminando-a
com o maior entusiasmo.
Segue-se a
publicação de seu artigo entusiástico em O Jornal, de que era à época o
responsável pelo rodapé literário, a que dá o título de “Uma Revelação”, ou
“Romancista ao Norte”, não me lembro bem. Daí à consagração literária em âmbito
nacional foi um passo. Às vezes, na vida literária, nós, estudiosos do assunto,
temos essas boas surpresas. Mas, para não arriscarmos perder o nosso precioso
tempo com sensaborias literárias ou com literatices, que é a contrafação da
literatura, é bom adotarmos a técnica do Cineas Santos, para não chegarmos ao
radicalismo do velho Graça, que era, em matéria de estilo e composição
literária de uma exigência mortal. Terminaria esta nota com aquele episódio já
por mim referido em recente livro a respeito do autor de Angústia, A
Lição de Graciliano Ramos, (Corisco, 2003)
O fato foi contado
pelo jornalista Chico Lopes, em um jornal de Brasília, intitulado “Graciliano
Ramos: escrever bem é um dever moral”.
Diz-nos ele naquele
texto que o autor de Caetés ficava furioso com “frases mentirosas,
alambicadas, adjetivos falsificadores, embelezamentos estúpidos”.
Alguém, um
dia, quando o romancista não se
encontrava por perto, “deu uma olhada xereta no texto que estava revisando”, no
velho Correio da Manhã, de que era ele à época o “Copidesque” (havia
essa figura naqueles bons tempos). E notou que ele deixara ali, “numa canetada
furiosa”, num texto alusivo ao Natal, que começaria pela expressão “bimbalham
os sinos...” aquela descompostura que era muito do seu agrado: “Bimbalham os
sinos é a p.. q... p... III”. (Ob. cit.
p. 47)