M. Paulo Nunes
Cumpridas algumas
obrigações funcionais que não sei se ainda se justificam a essa altura da vida
(talvez não), peguei num livro da prosa diarística do Vergílio Ferreira,
romancista português que esteve em voga durante um largo período da moderna
literatura portuguesa, falecido em 1º de março de 1996, sobre quem cheguei a
escrever alguns pequenos ensaios, posteriormente incluídos em meu livro Modernismo
& Vanguarda – 1ª série (1996)
Dele recebi, pouco
antes de sua morte, uma carta manuscrita que cheguei a transcrever em sua
homenagem, num dos artigos posteriormente publicados, depois de decifrar-lhe,
com alguma dificuldade, a grafia difícil. Nela, o escritor agradece o meu
interesse por sua obra e me transmite o grande interesse que ela vinha
despertando, como objeto de teses e estudos, não apenas no Brasil e em
Portugal, como ainda, na Espanha e em França, como eles dizem em Portugal. Na
carta me diz ele, textualmente: “Muito grato obviamente lhe ficarei se tais meus
livros lhe vierem a ser motivo de um longo ensaio.” Tais estudos lhe foram
enviados “pelo nosso amigo comum” Alberto da Costa e Silva, segundo suas
próprias palavras, naquela correspondência.
Assumi assim moralmente essa obrigação, mas
até hoje não a cumpri integralmente. Primeiro, porque não seria eu a pessoa
indicada para tão arriscada empresa. Segundo, em razão de nossa velha
protelação brasileira de deixar sempre para amanhã aquilo que muito bem pode
ser feito hoje. Mas, como pretendo ainda, se a “indesejada das gentes” do
famoso poema de Bandeira (“Consoada”) o permitir, publicar alguns estudos a que
eu denominarei de pensamento vivo de alguns autores de minha leitura habitual,
outros, não mais, como Eça, Machado de Assis, Borges, Vargas Llosa, Saramago e
alguns mais, como o próprio Vergílio Ferreira, cuja leitura agora retomo, nele
incluiria o autor de Manhã Submersa, de modo especial colhendo algumas
reflexões primorosas de sua prosa diarística. Ele, que se vem revelando, pelo
menos para o meu gosto, um dos mais intensos e profundos pensadores da
literatura portuguesa, aquela face dessa literatura que é pouco lembrada, como
o seu aspecto confessional,mais notável na francesa.
Com Graciliano
Ramos creio já ter cumprido parte do meu débito, ao publicar, há uns dois anos,
no cinqüentário de seu silêncio, meu livro A Lição de Graciliano Ramos,
um livrinho razoavelmente bem aceito por leitores que por ele se têm
interessado. A esse novo livro intitularia, de forma um tanto machadiana,
porquanto retirado de uma frase sua, “Entre a Espiga e Mão”, tendo como
subtítulo a expressão: “Ensaios Impopulares”, que é o título de um dos livros
de Bertrand Russell. A frase completa do velho Machado é esta: “Entre a espiga
e a mão há sempre o muro”.
Para concluir a nota,
vamos a um texto do Vergílio Ferreira, extraído de sua prosa diarística, Conta-Corrente
– IV, (Bertrand Editora) pelo que ele representa de coerência do
intelectual, especialmente nos dias que correm:
Em nota de 29 de
julho (1982), após um colóquio com professores franceses sobre a sua obra,
diz-nos o autor de Estrela Polar: “E agora que o recordo, reflito uma
vez mais que o homem cristaliza a sua vida em torno das ideias que angariou até
aos trinta ou quarenta anos. Daí me vem a impressão que não tenho já nada a
ler. Um diálogo se estabelece entre as nossas tendências e o que o tempo nos
propõe. Desse confronto nasce um acerto de nós com os mais e daí nascem as duas
ou três idéias que nos governam a vida. Nós somos o que somos, mais o que mil
acidentes nos despertam para sermos em consciência ou conseqüência. E tudo o
mais que daí sobeja é só a espera da morte. O que nos contraria o que já somos,
o que em conclusão vimos a ser, raro nos muda o pensar, porque apenas o
movimenta para superar a contrariedade, para nos repor no que somos, absorvendo
e vencendo a contradição. E isso agrava-se quando, como eu, se tem uma vocação
sedentária – desde as ideias que se têm ao sofá em que se instala o viver
quotidiano. Assim Lisboa é para mim uma cidade sedentária e só bairro em que
vivo era-me cidade bastante. E quanto ao planeta em que vivo, era-me bastante
um satélite invisível de todo o nosso sistema solar. (Ob. cit. p. 83)