M.
Paulo Nunes
Já me referi ao assunto, mais de uma vez, talvez não
nesta coluna, mas em publicações anteriores, sobre o magno problema que ora
aqui me traz, retomando depois de alguns dias os escritos semanais que me têm
ocupado, de algum tempo a esta parte, no Diário. Trata-se da famigerada
discussão, no âmbito da literatura, entre “clérigos” e “cidadãos” que vez por
outra aflora nas discussões literárias a respeito dessas duas opções dos
intelectuais.
Quem abordou o assunto, pela primeira vez, foi o escritor
francês Julian Benda, em sua obra famosa La Trahision des Clers (A
Traição dos Clérigos), na qual reclama para o escritor uma posição neutra
em relação aos conflitos sociais de nosso tempo, afastando-se da política e do
debate de outros assuntos públicos atuais, para consagrar-se exclusivamente à
sua arte, como se ela fosse um universo à parte ou a torre de marfim em que
vivem os puros espíritos. Talvez haja um
pouco de caricatura no que estou dizendo, mas creio ser exatamente esta a
gênese de sua posição.
De outra parte, o poeta norte-americano Archibald
MacLeish, assessor cultural do Presidente Roosevelt, servindo na Biblioteca do
Congresso, de 1939 a 44, em seu livro Os Irresponsáveis, adota posição
diametralmente oposta àquela.Para ele, o escritor não vive exclusivamente para
sua arte, mas, ao contrário, como cidadão e vivente de um tempo conturbado, no
qual o indivíduo é permanentemente acossado pelos duros problemas sociais de
sua época, não poderá, como cidadão, fugir ao debate das questões que, de
resto, são os problemas de qualquer tempo ou lugar. É claro que a arte não pode
nem deve servir a um partido político, como muitos já o fizeram, inclusive e
principalmente entre nós. Jorge Amado, por exemplo, um dos nossos maiores
romancistas dos tempos atuais, largamente o fez, em seu livro Os
Subterrâneos da Liberdade, em que conta as lutas e as peripécias vividas
pelos líderes e militantes do Partido Comunista, de que depois viria
posteriormente a afastar-se, escrevendo obras marcantes da moderna literatura
brasileira, também escritas na fase anterior, como Jubiabá, Terras do Sem
Fim e Capitães da Areia.
Assim, o que fazer? Na extinta União
Soviética surgiu, no auge da “guerra fria”, no confronto entre as duas
superpotências (Estados Unidos e URSS), um cidadão de triste memória, chamado
Zdanov, ditando a seus ventríloquos uma
nova teoria literária, a serviço da arte totalitária comunista, uma espécie de
receita a que deveriam obedecer,como a última palavra, em matéria de arte, todos
os escritores membros do Partido (aqui o chamado “Partidão”), em todas as
latitudes. Foi um desastre do ponto de vista artístico. Graciliano Ramos,
filiado ao PC, mas, como cidadão, um caráter independente, quando lhe falaram
no assunto, retrucou à sua maneira: “Zdanov é um cavalo!” E seguiu fazendo os
seus romances da maneira que lhe aprouvesse.
Em resumo, o escritor, o romancista, o ensaísta, o poeta
é livre para retratar o que quiser. Somente não poderá fazê-lo a serviço de
qualquer seita, partido ou ideologia, seja de que natureza for, porquanto o romancista, como intérprete da
vida, só pode exercer seu ofício com inteira e absoluta independência, guiado
apenas pelo gênio de sua invenção artística. O mais é estreiteza moral dos que
se julgam donos da verdade, ou seja, da sua verdade particular ou partidária,
que desejariam impor a todos os viventes, inclusive aos artistas, intelectuais
que são, por natureza, as criaturas mais
insubmissas do mundo em que vivemos.
Fica em tudo a lição de escrever do velho Graça, como
declara em carta à irmã que quer publicar um romance: “Só conseguimos deitar no
papel os nossos sentimentos, a nossa vida. Arte é sangue, é carne. Além disso
não há nada. As nossas personagens são pedaços de nós mesmos... Arte é isso.” Esta
a lição de quem soube escrever como uma irrestível vocação.