M. Paulo Nunes
A reforma estética
do Modernismo importou numa profunda transformação poética que alterou
substancialmente os cânones da poesia tradicional, especialmente aquela feição
dominante em nossa receita literária de então, representada pela linguagem do
parnasianismo. E ai surgiram o verso de circunstância ou a poesia do cotidiano
ou até mesmo o poema piada que levaria Carlos Drummond de Andrade ao extremo,
em seu livro de estréia, em 1932, Alguma
Poesia, ao poetar daquela maneira insólita que levava ao delírio os
plumitivos de nosso tempo: “Stop/ a vida parou/ ou foi o automóvel?”. Ou ainda
em um poema intitulado “Bahia”: “É preciso escrever um poema sobre a Bahia./
Mas eu nunca fui lá!”
A lição de poesia
que o autor de Estrela da Manhã nos
dará é das mais originais, ao emprestar a episódios aparentemente sem qualquer
importância de sua vida pessoal os efeitos mais ricos ou mais edificantes, sem
renegar entretanto o legado maior da grande poesia de língua portuguesa, ao
mesmo nível de Camões, de Bocege, de Antero de Quental, de Gonçalves Dias, de
Antônio Nobre, de Fernando Pessoa, como veremos a seguir.
Como diria Oto
Maria Carpeaux, que de forma tão excelente o interpretou em seus admiráveis
estudos sobre o poeta, “Seus temas são simples: recordação da infância, um amor
irrealizável, a sombra de uma doença grave, um enterro que passa, uma linda
tarde de despedida, uma velha casa que vai abaixo e na qual se sofreu e se amou
muito. Mas eis o milagre realizado: cada um desses temas simples é a célula
máter de um processo de desenvolvimento temático, enriquecendo-se e revelando
facetas novas, inesperadas, e enquadrando-se na forma para a qual estava
predestinada e enfim, formando o cristal perfeito, o poema.” (Ob. cit., p. XXX).
Neste sentido, sua
vida pessoal tão simples é o campo fértil dessa grande poesia, desde o seu
livro inicial A Cinza das Horas até
os instantes finais, quando ele assume a condição de um dos maiores e mais
perfeitos poetas de nosso país e da língua portuguesa:
“Sou bem nascido./
Menino, fui como os demais, feliz./ Depois, veio o mau destino/ e fez de mim o
quis.” (Ob. cit., p. 5) Ou aquela estrofe do poema “Testamento”, do livro Lira
dos Cinqüent’Anos:
“Criou-me desde eu
menino/ Para arquiteto meu pai,/ Foi-se-me um dia a saúde.../ Fiz-me arquiteto?
Não pude!/ Sou poeta menor, perdoai!” (Ob. cit., p. 173)
A vida de Bandeira,
que num poema se confessa um “tísico profissional”, foi toda ela uma contínua
preparação para a morte, desde quando, adolescente, deixou de entrar para a
escola de Arquitetura para recolher-se a um hospital para tuberculose, em Clavadel,
na Suíça, a fim de cuidar da saúde. Assim ele a prefigura, no poema “Consoada”,
de seu livro Opus 10:
“Quando a
Indesejada das gentes chegar/ (Não sei se dura ou caroável),/ Talvez eu tenha medo./ Talvez sorria, ou diga:/ -
Alô iniludível!/ O meu dia foi bom, pode a noite descer./ (A noite com os seus
sortilégios.) Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,/ A mesa posta,/ Com
cada coisa em seu lugar.” (Ob. cit. p. 221).).
Todos esses
inumeráveis rítimos da poesia de Bandeira, desde a redondilha maior que vem da
multissecular tradição da língua, porquanto desde os cancioneiros medievais,
perseguem essa temática. Nesse metro, a chamada “medida velha”, escreve ele
grande poemas como “Última Canção do Beco”, “No vosso e em um coração”, “Vou-me
Embora pra Pasárgada” e tantos outros. Passa a seguir largamente pelo metro
livre da reforma modernista, até o soneto, de que foi ele também um dos mais
excelentes cultores como se verifica com este soneto “Peregrinação”, de seu
livro Estrela da Tarde e com que o
“velho bardo” se apresenta como um dos grandes representantes da poesia lírica
em língua portuguesa:
“Quando olhada de
face, era um abril./ Quando olhada de
lado, era um agosto./ Duas mulheres numa: tinha o rosto/ Gordo de frente, magro
de perfil./ Fazia as sobrancelhas como um til;/ A boca, como um o (quase). Isto
posto,/ Não vou dizer o quanto a amei. Nem gosto/ de me lembrar, que são
tristezas mil./ Eis senão quando um dia... Mas, caluda!/ Não me vai bem fazer
uma canção/ Desesperada, como fez Neruda./ Amor total e falho... Puro e
impuro.../ Amor de velho adolescente... E tão/ Sabendo a cinza e a pêssego
maduro... (Ob. cit., p. 244)