M. Paulo
Nunes
Retomando o fio da meada, volto à prosa diarística
na literatura portuguesa, focando-a na figura de Vergílio Ferreira, cuja
romancística já foi tratada em artigos de imprensa ou em livros do autor desta
nota.
Já fizemos aqui a distinção, baseada em
opinião idônea, no caso, a do saudoso romancista Josué Montello, quando
esclarece que a verdade histórica é uma, nas memórias, e outra, no diário. E
citamos o caso do julgamento que faz o poeta Paul Claudel, quando embaixador da
França no Brasil, de uma das maiores figuras da cultura brasileira, Rui
Barbosa: numa, chamado-o de inseto, dado
o seu aspecto físico mirrado, e noutra, ou seja, em suas memórias, dando-lhe a
reverência que merece o seu papel de homem público e figura proeminente de
nossa cultura.
Dos representantes da literatura portuguesa, neste
gênero de prosa, a diarística, Miguel Torga, Vergílio Ferreira, José Saramago e
Fernando Namora, todos por mim lidos e relidos, pacientemente, ou seja, com a
pachorra do leitor interessado, anotando-os, comentando-os em artigos de
jornal, destacaria hoje o autor de Estrela Polar, Vergílio Ferreira, com
quem cheguei a manter breve correspondência, como já declarei nestas notas,
pelo fato de ter com ele talvez maior empatia, digamos assim. De Saramago
também sou leitor compulsivo, porquanto pouco do que escreveu me é estranho e
sobre ele também tenho escrito bastante, chegando a constituir verdadeira
mania.
Mas, em relação ao autor de Manhã Submersa,
em quem podemos surpreender o aspecto mais denso e mais profundo do romance
português, tenho por ele maior inclinação. Além do mais, do ponto de vista
filosófico, ou no seu caso particular, existencial, diríamos que tanto o seu
romance, quanto o seu diário, calam mais fundo no leitor, pelo menos num leitor
do meu tipo, preocupado com o problema do ser.
Na nova fase do seu Diário, que ele denomina Conta-Corrente
I, que acabo de reler, pinçarei algumas citações sobre problemas que dizem
de perto com as solicitações atuais, como a
posição do escritor diante da vida, ou com os chamados problemas
existenciais, estes relativos ao ser, em conflito consigo mesmo ou com os
outros seres. Ou, como diria o mítico Fernando Pessoa, os conflitos comigo e os
“comigos” de mim.
Vamos começar hoje por um problema bem comum à
nossa condição de escritor que, bons ou maus, todos o somos os que escrevemos:
“Aviso aos escribas meus irmãos, chegados à
maioridade: Se um escriba noviço te pedir um prefácio que lhe lance o seu
primeiro livro, ou um artigo que o apresente ao público ou o que for que o
promova, se acaso esperas daí uma palavra de reconhecimento (em público), ou
uma palavra de apreço (em público), ou uma dedicatória num livro, ou uma
simples referência amável numa entrevista ou seja o que for de simpatia (sempre
em público), não lhe escrevas o prefácio nem lhe escrevas o artigo nem te mexas
donde estás para o que lhe dê um empurrão para a glória. E se um outro escriba
se prepara para o arranque e te freqüenta a amizade e a adulação e o mais, com
o fim de talvez o recompensares com um prefácio de apresentação, etc., não te
movas nem te comovas, porque o que ele quer de ti é um jeito suficientemente
agachado para lhe servires de pedestal. Porque para quem quer alçar-se à glória
e seu proveitos, a maior humilhação que se lhe pode infligir é o favor. Porque
o favor só se faz a quem é humilde e se não sente vocacionado para subir além
da humildade. E para os outros o favor é humilhação mas sem possibilidade de a
ele se poder reagir por o não parecer. Porque só a humilhação traz o odioso de
o ser, é que pode pagar-se em dinheiro
contato, ou seja um outro ódio “. (Ob. cit. p. 51.)