M. Paulo Nunes
Não sei se aqueles dez leitores com os
quais dizia contar o velho Machado de Assis, ou mesmo cinco, reduzindo-os ao
essencial, terão acompanhado nessas notas o embarque de Maria Eduarda para Paris,
na Estação de Santa-Apolônia, em um vagão de luxo, tomado pelo Vilaça, toda de
preta, parecendo uma rainha de romance, como diria o procurador.
Passemos à palavra ao narrador:
“Ega, que viera cedo, com o Vilaça,
acabava de despachar a sua bagagem para o Douro, quando avistou Maria, que
estava trazendo Rosa pela mão. Vinha toda envolta numa grande peliça escura,
com um véu dobrado, espesso como uma máscara: e a mesma gaze de luto escondia o
rostozinho da pequena fazendo-lhe um laço sobre a touca... Ega correu para
Maria Eduarda, conduziu-a pelo braço, em silêncio, ao vagão-salão que tinha
todas as cortinas cerradas. Junto do estribo ela tirou devagar a luva. E muda,
estendeu-lhe a mão.
“- Ainda nos vemos no Entroncamento –
murmurou Ega. – Eu sigo também para o Norte. ((Ob. cit., p. 433)
Diante da curiosidade de alguns
sujeitos que pararam “ao ver sumir-se naquela carruagem de luxo, fechada,
misteriosa, uma senhora que parecia triste, coberta de negro”, apenas Ega
fechou à portinhola, o Neves, o da Tarde
e do Tribunal de Contas, rompeu de entre um grupo, e arrebatando-lhe o braço
com sofreguidão, perguntou-lhe quem era.
“Ega arrastou-o pela plataforma, para
lhe deixar cair no ouvido, já muito adiante, tragicamente:
- Cleópatra.
“O político, furioso, ficou rosnando:
- ‘Que asno! Ega abalara. Junto do seu compartimento Vilaça esperava, ainda
deslumbrado com aquela figura de Maria Eduarda, tão melancólica e nobre. Nunca
a vira antes. E parecia-lhe uma rainha de romance.
“Acredite o amigo, fez-me impressão!
Dá-nos uma bolada, mas é uma soberda praça.” (Ob. cit., p. 433).
O comboio partiu e o Neves, do
Tribunal de Contas, ainda furioso, vendo o Ega que também embarcava,
atirou-lhe, disfarçadamente, um gesto obsceno.
A grande novidade que Carlos
ciosamente guardara da curiosidade do amigo até o seu reencontro em Lisboa,
fora a do casamento de Maria Eduarda. O assunto veio à tona quando da visita de
ambos ao Ramalhete.
“Assim o anunciara ela a Carlos numa
carta muito simples que recebera na quinta dos Vila-Medina. Ia casar. E não
parecia ser uma resolução tomada arrebatamente, sob um impulso do coração. Ela
aludia nessa carta a ter ‘pensado muito, refletido muito...’ De resto o noivo
devia ter perto de cinqüenta anos. E Carlos portanto via ali a união de dois
seres desiludidos da vida, maltratados por ela, cansados ou assustados do seu
isolamento, que sentindo um no outro qualidades sérias de coração e de
espírito, punham em comum o seu resto de
calor, de alegria e de coragem para afrontar juntos a velhice...” (Ob. cit. p.
464)
Na carta ela ainda lhe dizia: “sou
apenas mais nova que o meu noivo seis anos e três meses”. Ele se chamava Mr. de
Trelain e de tratava “evidentemente de um homem de espírito largo,
desembaraçado de prejuízos, duma benevolência quase misericordiosa, porque
quisera Maria, conhecendo bem os seus erros”. (Ob. cit., idem).
A uma pergunta de Ega se ela
continuava a viver em Orleães, Carlos respondera que vivia ao pé de Orleães,
numa propriedade que ali adquirira, chamada Les
Rosières. O noivo habitava nos arredores, pois ela o chamava de “vizinho”.
“E era naturalmente um gentilhomme
campagnard, de família séria, com fortuna.” (Ob. cit., idem)
A uma pergunta do amigo se ela só
tinha de seu o que ele lhe dava, Carlos respondeu já lhe haver contado aquilo
por carta, ou seja, que ela se recusara terminantemente a receber parte alguma
da herança a que teria direito e que o Vilaça arranjara as coisas por meio de
uma doação correspondente a doze contos de réis de renda.
“_ E que efeito te fez isto?
- Um efeito de conclusão, de absoluto
remate. É como se ela morresse, morrendo com ela todo o passado, e agora renascesse
sob outra forma. Já não é Maria Eduarda. É Madame de Trelain, uma senhora
francesa. Sob este nome, tudo o que houve fica sumido, enterrado a mil braças,
findo para sempre, sem mesmo deixar memória... Foi o efeito que me fez.” (Ob.
cit., p. 466)