M. Paulo
Nunes
Tenho ouvido com freqüência seguidas referências à expressão cultura
popular, como se estivéssemos agora a descobrir a América. Talvez algumas
pessoas bem intencionadas a tenham realmente descoberto agora e, como toda novidade,
entendam de popularizá-la. Vamos assim repor as coisas, em seus devidos
lugares, sobretudo numa época em que as palavras, como inclusão e outras que
tais hajam bem ou mal dominado o nosso vocabulário comum.
Meus primeiros contactos com a chamada cultura popular se deram de forma
bem marcante, em minha cidade natal, Regeneração, uma das mais antigas vilas do
Estado, criada, como freguesia, em 1805 (faz portanto mais de duzentos anos), e
instituída como Vila de São Gonçalo, em 1832, perdendo em 1860 sua autonomia
para Amarante, para vê-la restaurada em 1882, já então com o nome atual de
Regeneração.
Ali tomei conhecimento, na minha meninice, com o mundo policolor dos
reisados que não incluía apenas a festa popular, mas também a mais sociável ou
de elite cantada e dançada pelas “moças da sociedade”, esta de inspiração
nitidamente portuguesa. Também ali conheci por essa época, nos meses de junho,
o boi de São João, uma festa cheia de cantos, danças e diálogos eloqüentes
conduzida pelo mestre Faustino Maçaromba, que arrebatava toda a população.
Igualmente o reisado, este, de caráter popular, era cantado e dançado nas
portas de casa, do final do ano ao “dia de reis”, com figuras populares como a
“burrinha” e outras mais que nos encantavam. Outra forma de manifestação
popular de que também tomamos ali conhecimento foi o pagode cantado e dançado
por negros que inspiraria um belo estudo de meu parente João Berchmans de
Carvalho Sobrinho e constitui sua tese de mestrado em nossa Universidade,
publicada com o título Os Tambores do Pagode.
A vizinha cidade de Amarante, também detentora de uma rica literatura
oral, teve a felicidade de recolher essa manifestação oral mediante o concurso
de uma dedicada pesquisadora, Nasi Castro, de cuja autoria é o livro admirável
– Amarante – Folclore e Memória, que não se constitui apenas em
repositório da tradição oral amarantina, mas piauiense e em grande parte
brasileira também. Ficou-me, assim, da infância distante e hoje perdida no
tempo esta lembrança indelével.
No meu período de formação, quando me propus ser professor, em minhas
inumeráveis leituras de autores das duas literaturas, pude também acompanhar de
perto a evolução do gênero, ou seja, a ocorrência da cultura popular ou da
literatura oral, conforme a batizou o mestre Luis da Câmara Cascudo, naquelas
literaturas.
Na literatura portuguesa quem fez a sua recolta foi Garrett (João
Batista da Silva Leitão de Almeida Garrett (1799-1854), introdutor do
romantismo, em Portugal, com o poema Camões (1825) e criador também do romance
histórico naquela literatura, que seria depois desenvolvido por Herculano. Em
sua obra, O Romanceiro, recenseia Garrett todas as manifestações da
cultura popular naquela literatura.
Em nossa literatura, várias figuras se notabilizaram como intérpretes do
gênero em seus escritos. Desde Sílvio Romero, autor de uma famosa História
da Literatura Brasileira, uma das obras fundamentais de nossa cultura, e se
distinguiu, no gênero, com Cantos Populares Contos Populares do Brasil, Folclore,
até o citado Luís da Câmara Cascudo, com sua História da Literatura Oral,
que integraria um projeto do crítico e historiador literário Álvaro Lins, do
qual apenas foram editados aquele livro e outro, Prosa de Ficção
(1870-1920), de Lúcia Miguel Pereira.
Também não se pode deixar de incluir nesta breve recensão a obra ímpar
de Ariano Suassuna sobre o mesmo tema, como O Auto da Compadecida, em
que reconstitui as características do teatro vicentino, no século XVI, em
Portugal, e lhe dá tonalidade moderna, e o romance famoso A Pedra do Reino.
O SENTIDO POPULAR DA LITERATURA BRASILEIRA
A contribuição relevante à divulgação da cultura popular em nosso país
se daria com o movimento modernista, porquanto, além da profunda revolução
estética que ele nos trouxe, contribuiria significativamente para a
explicitação dos valores tradicionais, em grande parte decorrentes das
culturais indígena e negra que constituiriam a base do ângulo cultural de que a
portuguesa haveria de representar o vértice, na condição de colonizadores, constituindo
assim esse “melting- polt”, de que resultaria a cultura brasileira.
Com o modernismo, entretanto, que haveria de operar “pari-passu” com as
mudanças sociais e políticas, advindas com a revolução de 30, esse aspecto
popular seria sobremodo explicitado. Depois da festa paulista de 22, com a
Semana de arte Moderna, surgiria, ao lado de uma literatura de protesto, de que
seriam expressão Mário e Oswald de Andrade, Graça Aranha e outros, deflagra-se
em nossa literatura o quadro de mudança.
Mário de Andrade, o mais representativo de todos, em termos de presença
mais atuante naquele movimento publica em 1928, um livro lendário e original, a
que ele classifica como rapsódia, e seria talvez aquele que pela primeira vez
transpõe entre nós a lenda para a literatura, Macunaíma, cognominado o
herói sem nenhum caráter, uma espécie de Pedro Malasartes nacional.
Passada a ebulição da Semana que se manifesta igualmente mediante a
presença de poetas representativos do movimento, como Cassiano Ricardo, que se
exprime através de obras representativas de uma poesia de caráter nacionalista,
como Borrões de Verde Amarelo, Martim Cererê e Deixa Estar
Jacaré, Menotti Del Pichia e outros, vem a fase de construção do
Modernismo, com o romance de 30 e a poesia de Drummond, Vinicius de Moraes e
Jorge de Lima, este o celebrado autor de “Essa Negra Fulo”. Quanto a Manuel Bandeira, que já vinha do
Simbolismo, com A Cinza das Horas, seu livro de estréia, e é cognominado
o “São João Batista do Modernismo”, continua a sua brilhante trajetória
literária, afirmando-se como um dos grandes poetas brasileiros.
Com a revolução de 30, desaguadouro natural de todos os movimentos de
protesto que se iniciam com o primeiro 5 de julho de 1922, e de que no campo
político se torna expressão maior a Coluna Prestes, de par com as mudanças
políticas que se operam sob a liderança de Getúlio Vargas e dos tenentes
revolucionários que o acompanharam no movimento, verifica-se igualmente uma
profunda transformação cultural no país, voltada já agora para o estudo de sua
realidade social e política. Essa transformação se opera no aspecto
educacional, com a revolução pedagógica que se inicia com o Manifesto dos
Pioneiros da Escola Nova, de que foram signatários Anísio Teixeira, Lourenço
Filho, Almeida Júnior, Paes Leme, Francisco Venâncio Filho, e de que seria
relator o grande educador Fernando de Azevedo. No campo histórico-sociológico
ela se faz com o aparecimento, ainda em 32, do livro Evolução Política do
Brasil, de Caio Prado Jr., tentativa de Interpretação dialética da história
do país, em 1933, com Raízes do
Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda e do clássico da história social do
Brasil, Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, que dá possivelmente
a maior interpretação social do país, especialmente, pelo estudo minucioso da
contribuição e da presença, não apenas do colonizador português, mas do índio e
do escravo africano na formação social do país. Esses autores seguem, a meu
ver, as pegadas de Euclides da Cunha, Manoel Bonfim, Oliveira Viana e Gilberto Amado,
no estudo da realidade social do país, sob novo enfoque.
A Revolução de 30 trouxe ainda outra revolução notável em nossa história
literária, que foi a presença do romance de 30 ou de documentação social da
realidade brasileira, a partir do aparecimento do romance A Bagaceira,
de José Américo de Almeida, saudado pelo crítico Tristão de Athayde em artigo
em O Jornal, com a expressão “Romancista ao Norte”, e significa o marco
inicial da nova literatura. A partir dele, surgem no Nordeste os romancistas hoje
clássicos: Rachel de Queiroz, Jorge Amado, José Lins do Rego, Graciliano Ramos,
Amando Fontes e muitos outros; no sul Érico Veríssimo, Ciro Martins, Dionélio
Machado; em Minas, Lúcio Cardoso, Cornélio Pena, Ciro dos Anjos, cada um deles
com o alto propósito de fazer o seu retrato do Brasil. Qual a contribuição
notável desses romancistas à Cultura Popular?
O nosso romance, de que os maiores representantes, nas
duas tendências em que ele se notabiliza, a social ou do “romance espetáculo”,
e a psicológica ou do romance problema”, segundo a caracterização do romancista
Vergílio Ferreira, teve em José de Alencar e Machado de Assis os seus mais
altos representantes. Ambos, à parte o indianismo de Alencar, com Iracema,
Ubirajara e O Guarani, são romancistas que retratam em suas obras
o ambiente social da burguesia urbana brasileira. Não chegaram até as camadas
populares de nossa sociedade, da qual
sempre viveram praticamente divorciados. Exceção seja feita, é claro, ao romancista
Manuel Antônio de Almeida, um realista “avant la lèttre”, com o livro admirável
sob todos os títulos Memórias de um Sargento de Milícias, que retrata o
Rio de Janeiro do tempo de Dom João VI. É este um dos mais populares de todos
os nossos romances, com os seus tipos populares, como o Major Vidigal, o
temível delegado, a costumeira, a “comadre” ou parteira, o mestre de reza, em
suma, toda a humanidade que constituía a expressão mais viva de uma cultura que
iria caracterizar o nosso país e para sempre imortalizada nas vigorosas páginas
desse livro revelador.
Os novos romancistas, entretanto, incorporam à nossa literatura um
elemento novo, ou seja, o povo excluído, o da nossa vasta interlândia,
abandonado á própria sorte e que se acha no cerne da denúncia trazida à nação
pelo genial Euclides da Cunha, em seu livro profético e assustador, Os
Sertões, aparecido após a guerra de Canudos, em 1902. Esse fenômeno, o da
incorporação do povo à nossa temática literária, representou a valorização
substancial de nossa cultura, tornando-a assim mais democrática, plural e
fraterna.
Em alguns desses autores
mencionados, como Jorge Amado e Graciliano Ramos o popular permeia sobremodo a
sua obra que em romances como Jubiabá e Tenda dos Milagres, de
Jorge Amado, ele se torna a sua razão de ser.No primeiro, com a exaltação dos
valores afro e no segundo, com a sua defesa militante, através do personagem
Pedro Arcanjo. Em Graciliano, um romancista que se torna um clássico pela
linguagem e pelo estilo depurado, mediante a incorporação da linguagem popular
ao seu vocabulário, como o fizera o dramaturgo renascentista Gil Vicente, em
seu teatro de acento eminentemente popular. Após a conclusão de seu famoso
romance São Bernardo, no qual o autor utiliza como narrador uma pessoa
bronca e inculta, diz ele em carta à sua mulher, Heloísa:
“O São Bernardo está pronto, mas foi escrito
quase todo em português, como você viu. Agora está sendo traduzido para o
brasileiro, um brasileiro muito encrencado, muito diferente deste que aparece
nos livros da gente da cidade, um brasileiro de matuto, com uma quantidade
enorme de expressões inéditas, belezas que eu mesmo nem suspeitava que
existissem. O resultado é que a coisa tem períodos absolutamente
incompreensíveis para a gente letrada do asfalto e dos cafés. Sendo publicada,
serviria muito para a fixação da língua nacional. Quem sabe se daqui a
trezentos anos eu não serei um clássico? Os idiotas que estudarem gramática
lerão S. Bernardo, cochilando, e procurarão nos monólogos de seu Paulo
Honório exemplos de boa linguagem.” (Cf. O Velho Graça, p. 83 –
Denis de Morais – José Olympio Editora, 1992.)
A esses autores acrescentaríamos um outro da mesma geração, dentre os
mais novos, Josué Montello, com a sua obra-prima Os Tambores de São Luis,
por nós aqui estudado, quando do desaparecimento daquele romancista em abril de
2005, romance dos mais perfeitos de nossa literatura e em que utiliza como
temática um século da escravidão negra em sua terra, o Maranhão.
Poderíamos referir outros exemplos da popularização da cultura em outros
romances dessa fase, como a obra de Guimarães Rosa, mas já aí teríamos que
aprofundar o assunto, no que tange à linguagem popular e o seu tratamento na
obra literária, que não constitui o objeto deste estudo. Não poderíamos,
entretanto, encerrar este estudo sem uma referência especial à grande e saudosa
romancista Alvina Gameiro e de modo especial ao seu livro admirável ou à sua
obra-prima, que o é também de nossa literatura, Curral de Serras, obra
em que soma, à estilização literária da linguagem do caboclo piauiense, a da
sua construção poética, porquanto todo aquele romance é escrito em versos de
redondilha maior, o mais vetusto metro da literatura de língua portuguesa e
esplende na construção romanesca originalíssima daquela romancista, uma beleza
digna de ver-se.
Ao concluir, para não tomar mais tempo ao debate, acrescentaria apenas
uma breve referência àqueles autores que trataram especificamente do assunto,
em seu aspecto didático ou científico, e são inúmeros, mas somente referirei
aqueles que conheço um pouco, como Artur Ramos, grande estudioso da cultura
negra e dos assuntos de mestiçagem no Brasil. Destacam-se, em sua vasta
obra, As Culturas Negras no Novo Mundo, O Negro Brasileiro, A
Aculturação Negra no Brasil e Introdução à Antropologia Brasileira; Nina
Rodrigues, pioneiro nos estudos fundamentais sobre a cultura afro na Bahia, com
os livros O Animismo Fetichista dos Negros na Bahia, no qual
contém o estudo de sua liturgia, com os seus sortilégios, cultos, cerimônias,
candomblés, sacrifícios e ritos funerários e o sincretismo religioso dessa
cultura, no Brasil; Os Africanos no Brasil, obra de grande significação
para o estudo e a sobrevivência dessa cultura, em nosso país; Luís Viana Filho,
com O Negro na Bahia, Edison Carneiro, com A Sabedoria Popular e
vários estudos sobre o candomblés; Roger Bastide – Imagens do Nordeste
Místico, e muitos outros.
E agora, concluindo mesmo, faço-o de bom grado, com uma citação
pertinente do velho e saudoso mestre Josué Montello, em seu livro de
reminiscências literárias, Reencontro Com Meus Mestres:
“Há tempos, ao ler um velho adagiário português, dei
com este reparo, cristalizado pela sabedoria popular em duas linhas
conclusivas: “Arrobas não são quintais, nem as coisas são iguais.
“Confesso aqui, acrescenta aquele autor, que durante bom tempo, andei
procurando entender esse adágio, sem atinar-lhe com o sentido.
“Há alguns anos, a propósito do Adagiário Brasileiro, de Leonardo
Mota, tive a oportunidade de admitir que, em síntese, cada adágio, cada refrão,
repetido por sucessivas gerações, nada mais serão do que o conto esquecido de
que apenas nos ficou a moral da fábula. Ou seja: o remate, a conclusão, o
ensinamento ajustado ao que Giovani Vico, em 1725, na sua Scienza Nuova,
reconhecia ser a sabedoria das nações”.
E conclui:
“Cada um de nós, sempre que recorre a um adágio ou a um provérbio,
aplica-o a um caso, a um episódio, a uma situação, de modo que a sua força
conclusiva se revigora, no fluxo da oralidade.” (Ob. cit. p. 40)