M.Paulo Nunes
Em Memórias
Póstumas de Machado de Assis, Josué Montello, no melhor livro jamais
escrito sofre o criador de Capitu, assinalou:
“Cumpre não
esquecer que cada escritor, além dos livros que escreveu e publicou, tem ainda
os que sonhou escrever, mas para os quais não dispõe de tempo e de oportunidade
para transferi-los ao papel.”
Acrescenta ainda o
nosso romancista e escritor que o Bruxo do Cosme Velho, com as reminiscências
que conseguiu captar na bela crônica sobre o Velho Senado, deu-nos a exata
dimensão do que teriam sido as suas próprias lembranças no caso de ele mesmo as
haver abordado, “ou nos textos existentes ou naqueles que iria escrever.” Para
compor a nossa mais bela evocação, bastaram-lhe aquelas litografias de Sisson a
respeito do Senado de 1860, para que
suas lembranças aflorassem “e o texto literário afluísse ao papel da escrita de
modo realmente irretocável”. (Ob. cit. p. 24)
Outro dia sonhei
com uma aula de História ministrada na CADES, sob a regência do saudoso mestre
Wall Ferraz, que dali sairia par a sua tarefa de administrador público dos mais
competentes e sérios que tivemos. Para os que não acreditam na imortalidade, e
felizmente não sou um deles, a alma humana sobrevive pelos menos através das
lembranças recorrentes do subconsciente, de onde afloram a cada passo de nossas
vidas.
De vez em quando
essas lembranças me açodam e, ao contrário dos sonhos maus que queremos
esquecer, desejaria que elas ficassem para sempre fazendo parte de nosso
rosário de recordações.
Em minha longa
serventia de administrador público e servidor da educação brasileira por quase
meio século, a CADES (Campanha de Aperfeiçoamento e Difusão do Ensino
Secundário) constitui uma delas. Criada em 1954, pelo então Diretor do Ensino
Secundário, Armando Hidelbrand, tinha ela por escopo preparar em cursos rápidos
e intensivos o professorado brasileiro que, na ausência ainda de docentes formados em nível superior, pudessem
atender à demanda de ginásios e colégios secundários que se criavam no país,
com a rápida expansão desse nível de ensino que se estendia por toda parte.
Essa expansão, sob certos aspectos, também desordenada, constituía a forma mais
rápida de elevação social daquele discipulado ainda fora dos bancos escolares,
na idade de formação, que iria constituirformar, à falta de escolas, a
população marginalizada cujo destino seria a miséria e o crime, que hoje
abundam em nossas periferias urbanas e constitui esta mancha a desafiar a
competência de nossas autoridades responsáveis pela segurança no país. Se
houvéssemos a tempo realizado nossas reformas
educacionais profundas, na época em que o fizeram países no mesmo
estágio de desenvolvimento social e econômico, como a Argentina, sob a égide de
Domingo Faustino Sarmiento, em meados do século XIX, ou os japoneses, na época
da dinastia Meiji, ou ainda, modernamente a Coréia e a Tailândia, mesmo sem
mudar revolucionariamente o regime social e político, não estaríamos a assistir
a essa luta cruenta em que estamos envolvidos, nesta batalha diária do povo
brasileiro pela sobrevivência.
De
todos os movimentos pedagógicos ou sociais e políticos em que no meu tempo
estive envolvido, visando preparar um país melhor e não esta aberração que aí
está, como o exemplo mais vivo da negação de todas as conquistas sociais,
nenhum sobreleva a minha experiências como Inspetor Seccional do Ensino
Secundário em nossa capital. Mobilizados na preparação de professores para o
desempenho eficiente de suas funções docentes em estabelecimentos que eram
criados, também em caráter de emergência, através da CNEC (Campanha Nacional de
Escolas da Comunidade), que teve no saudoso Arcebispo D. Avelar Brandão Vilela
o seu inspirador e no professor Roberto Gonçalves Freitas, dentre outros, o seu
grande artífice, estavamos convencidos de preparar pela educação um país melhor
e mais justo para todos. Ou pelo menos “os amanhãs que cantam”, no dizer do poeta.
Foi uma batalha
longa áspera e difícil. Fiquei dez anos sem direito a férias, porquanto os
cursos se realizavam no período de férias escolares e como eu era também
professor, tarefa de igual modo, extenuante, não me sobrava tempo nenhum para o
necessário lazer. Até hoje não sei ainda como sobrevivi e estou aqui, aos
oitenta e um anos, vivo e lúcido, com a graça de Deus, para contar-lhes a
história. (Continua)