M. Paulo Nunes
Com certeza é S.
Bernardo, de Graciliano Ramos, aparecido, em 1934, um dos livros mais bem construídos de nossa
literatura. Caetés, publicado no
ano anterior, revela ainda alguns defeitos em sua elaboração, a despeito da
preocupação constante de seu autor em ir depurando-o aos poucos. Não obstante
isso, sente-se ainda algumas hesitações do autor, decorrente das influências
dominantes a que não pôde fugir GR em seu processo de composição, o que denota ainda a presença um estreante.
Uma delas é a do seu compromisso com o realismo de Eça de Queiroz e ainda a sua
ironia ou o seu sarcasmos de que só aos poucos vai o romancista libertando-se
em suas obras posteriores. Em S. Bernardo, o autor se apresenta
bastante seguro em sua construção romanesca, de tal sorte que o romancista já
aí se revela na plena posse de seu instrumento de expressão que o seu estilo
despojado, sem ouropéis, como resultante do esforço de um dos grandes
construtores de nossa língua à qual incorpora formas novas de expressão
colhidas na linguagem e no vocabulário popular.
Por outro lado, seu
processo de composição é mais simples e de uma segurança inigualável. Nada de
quem esteja realizando uma tentativa de ensaio e erro para chegar afinal à obra
de arte perfeita. O livro parece ter nascido clássico, ou seja, livre de
redundâncias, de termos desnecessários, suscetíveis de serem modificados com o
passar do tempo.
Em sua invenção
também ou no processo de criação literária a elaboração talvez tenha sido a que
lhe tomou mais tempo.
No depoimento
pessoal recolhido por sua filha e biógrafa Clara Ramos, a Clarita do seu
segundo casamento, e tão afetivamente ligada ao romancista e com ele e D.
Heloísa partilhava as incomodidades da pensão da rua do Catete, ao sair da
prisão política a que foi submetido, em março de 1936, no ensaio de
interpretação da obra do pai, em seu livro Mestre Graciliano - Confirmação
Humana de uma Obra (Civilização Brasileira, 1979), apresenta o seguinte
quadro:.
Depois de aludir o
romancista à situação crítica em que se encontrava, no começo de 1932, em
Palmeira dos Índios,”com vários filhos pequenos, sem ofício e sem esperança”,
acrescenta:
“Nessa crítica
situação voltou-me ao espírito o criminoso que em 1924 me havia afastado as
inquietações – um tipo vermelho, cabeludo, violento, de mãos duras, sujas de
terra como raízes, habituadas a esbofetear caboclos na lavoura. As outras
figuras de novela não tinham relevo, perdiam-se à distância, vagas e
inconsistentes, mas o sujeito grosseiro e cascudo avultava, no alpendre da casa
grande de S. Bernardo, metido numa cadeira de vime, cachimbo na boca, olhando o
prado, novilhas caracus, habitações de moradores, capuchos embranquecendo o
algodoal, paus d’arco floridos a enfeitar a mata. E, sem recorrer ao manuscrito
de oito anos, pois isto prejudicaria irremediavelmente a composição, restaurei
o fazendeiro cru, a lápis, na sacristia da igreja enorme que o meu velho amigo
padre Macedo andava a construir. Surgiram personagens novos e a história foi
saindo muito diversa da primitiva.” (Ob. cit.,
p. 76)
Depois vem o
trabalho de carpintaria, já mais de uma vez referido nestas notas, que era nele
o mais demorado e difícil, um sofrimento perpétuo.
Mas, curiosamente,
de todas as obras do romancista, às quais sempre se refere com um ar de desdém
e sem qualquer simpatia, por essa tem ele o maior entusiasmo.
Em carta a Heloísa,
declara o romancista:
“O S. Bernardo
está pronto, mas foi escrito quase todo em português, como
você viu. Agora está sendo traduzido para o brasileiro, um brasileiro
encrencado, muito diferente deste que aparece nos livros da gente da cidade, um
brasileiro de matuto, com uma quantidade enorme de expressões inéditas, belezas
que eu mesmo nem suspeitava que existissem. O resultado é que a coisa tem
períodos absolutamente incompreensíveis para a gente letrada do asfalto e dos
cafés. Sendo publicada, serviria muito para a formação, ou antes para a fixação
da língua nacional. Quem sabe se daqui a trezentos anos eu não serei um clássico?
Os idiotas que estudarem gramática lerão S. Bernardo, cochilando, e
procurarão nos monólogos de seu Paulo Honório exemplos de boa linguagem.” (Cf.
Denis de Moraes – O Velho Graça, p. 83 – José Olympio Editora, 1992)
Já
vimos que não precisou o romancista de tanto tempo para que este livro e os
demais que lhe seguiram se tornassem clássicos, ou seja, modelos de boa
linguagem tanto em nossa quanto em todas as línguas cultas para as quais tem
sido largamente traduzido.