M.
Paulo Nunes
O
assunto já foi abordado em outra oportunidade, nesta coluna, mas volta agora à
tona em virtude do interesse despertado pela escolha do novo Nobel de
Literatura, especialmente por parte da ala feminina do Conselho de Cultura, em
que o assunto vem sendo discutido com o maior interesse.
É
muito difícil para um leitor compulsivo como é o meu caso abandonar o contacto
permanente com um escritor, principalmente se se trata de um narrador
instigante como o romancista peruano Mario Vargas Llosa, ora agraciado pela
Academia Sueca, um dos melhores representantes do romance hispano-americano da
mesma altitude de um Gabriel Garcia Marquez (Cem Anos de Solidão, O amor nos Tempos
do Cólera), de um Júlio Contazar (1914-84), de
quem podemos destacar o contista, com os seus contos poemas, quase ensaios, de Bestiário, e o romancista de Rayuela, Os Prêmios e Modelos para Amar e, “last but not least”, Jorge Luís
Borges (1899-1986),
o eterno e infinito Borges que por si só daria assunto para uma vida inteira,
se vida tivesse para (re)
lê-lo. Fica-nos aquela observação do Conde de Idanha, um dos grandes
camonistas, a respeito d’Os Lusíadas,
para quem é este um livro grande demais para ler-se de uma só vez e muito
pequeno para ler-se a vida inteira.
Depois
de já nos ter dado A Festa do Bode,
admirável painel social e político das ditaduras latino-americanas, fixando o
período da infamante ditadura, (todas
as ditaduras são infames, seja de que tonalidade forem)
do tirano da República Dominicana, Rafael Leônidas Trujillo, e em seguida a
saga da vida do pintor Paul Gauguin em O
Paraíso na Outra Esquina, agora volta à melhor literatura
erótico-sentimental, com este seu novo romance Travessuras da Menina Má.
Voltando
ao mesmo tema – o lirismo erótico-sentimental, retoma um pouco também a
paisagem limenha, numa representação da alta burguesia do elegante bairro de
Miraflores, em seus anos dourados da década de 50, em que aparecem as duas
irmãs “chilenitas”, que depois verificou-se não serem sequer chilenas, mas
peruanas da classe mais pobre do país, por uma das quais, a “chilena” Lily, se
apaixona, perdidamente, com um desgraçado amor que lhe consome a vida inteira,
aquele “soi-disant” jornalista, diplomata e escritor Ricardo Somocurcío.
A
história começa nos anos 50 do século passado, naquele bairro da Cidade dos Reis,
mas não para aí. Os dois personagens seguidamente se reencontram em Londres,
Paris, Tóquio e Madri, “à medida que esse amor cresce e se transforma”, e
converte aquela “menina má” na tormentosa paixão de Ricardo, um jovem de bons
princípios e propósitos edificantes de vida, mas que se vê presa do terrível
sortilégio daquela sedução irreversível que se transforma em perpétuo
sofrimento por conta de um amor sem remissão. Como pano de fundo, aparecem
neste romance sedutor a Paris revolucionária dos anos 60, a Londres das drogas,
do amor livre e da cultura “hippie” ou da contra-cultura, que daria o tom
àquela época de contestação e de mudança de valores, a Madri da transição
política pós-Franco e a Tóquio dos grandes mafiosos.
No
que tange à chamada intertextualidade, neste romance parecem cruzar-se várias
tendências romanescas e poéticas. Começaria com um episódio da antiguidade
clássica, qual seja o do livro IV da Eneida, de Virgílio, quando o fugitivo
Enéas, ao abandonar o quadro de desolação da guerra de Tróia, parte em sua
peregrinação marítima até Cartago, onde é acolhido pela rainha Dido que por ele
perdidamente se apaixona. Ao abandoná-la, Dido se suicida com a espada deixada
pelo herói troiano. O episódio inspirou a famosa “Cantata de Dido” do árcade
português Correia Garção (1724-1772),
que constitui um dos mais belos poemas da língua portuguesa.
Lembremos
ainda o Marcel Proust (1871-1922),
de um “Amor de Swann” (No
Caminho de Swann) em que o narrador
busca captar aquela obsessão de Carlos Swann por Odete de Crécy, motivada pela
leve semelhança daquela “cocote” com um quadro de Botticelli. Ou igualmente, em
nossos dias, em A Servidão Humana, de
Somerseth Maughan (1874-1965),
a desvairada paixão de Philip por
Mildreed, que converte num inferno a vida do protagonista, e levado à tela no
grande filme interpretado por Leslie Howard e Bete Davis.
Tudo
isto nos eleva este último livro de Vargas Llosa ao pedestal de uma de suas
obras-primas, em um de seus achados do romance erótico-sentimental, em que é
ele realmente mestre absoluto.