M. Paulo Nunes
Convidado por uma
professora do Liceu para ali proferir uma palestra sobre a reinauguração
daquele tradicional educandário, onde conclui, há sessenta anos o chamado curso
clássico marcada para às 9 horas de 2ª feira passada, dia 28 do corrente mês,
ali compareci no horário regulamentar, com 10 minutos de antecedência. Após
conversar com o seu atual diretor, Prof. Silva Neto, criatura simpática e
afável, filho de pessoas de meu convívio, verificamos ter havido algum equívoco
naquele convite, porquanto nem ele tomara conhecimento do assunto nem conseguiu
localizar a autora do convite e nada indicava ter havido qualquer ato preparado
com aquela finalidade.
Aproveitei
entretanto a oportunidade para, em
companhia do diretor, visitar o prédio devidamente reformado, inclusive uma das
salas de aula da parte oeste, na qual eu me lembrava haver lecionado durante
algum tempo, ao longo dos anos, cerca de 25, que ali exerci o ofício de
professor.
Lembrei-me a
propósito da famosa crônica de Machado de Assis sobre o Velho Senado, contida
nas Páginas Recolhidas e não pude deixar de associá-la a este momento de
evocação na história daquele velho educandário, pelo qual já passaram várias
gerações de estudantes e onde não mais havia retornado depois do meu voluntário
exílio brasiliense.
Todos se lembram
das palavras iniciais do romancista:
“A propósito de
algumas litografias de Sisson, tive há dias uma visão do Senado de 1860. Visões
valem o mesmo que a retina em que se operam. Um político, tornando a ver aquele
corpo, acharia nele a mesma alma dos seus correligionários extintos, e um
historiador colheria elementos para a história. Um simples curioso não descobre
mais que o pinturesco do tempo e a expressão das linhas com aquele tom geral
que dão as cousas mortas e enterradas.”( Obra Completa, vol. II, p. 636,
Companhia José Aguillar, Editora, Rio de Janeiro, 1974)
Depois de fixar, de
forma imperecível o retrato das figuras do tempo e de reconstituir, através
delas, a fisionomia moral de uma época, conclui o relato à maneira niilista,
evocando a visão das personagens desaparecendo, uma a uma, a enfiar por um
corredor escuro “cuja porta era fechada por um homem de capa preta, meias de
seda preta, calções pretos e sapatos de fivela.”
E acrescenta a
seguir:
“Este era nada
menos que o próprio porteiro do Senado, vestido segundo as praxes do tempo, nos
dias de abertura e encerramento da assembléia geral. Quanta cousa obsoleta!
Alguém ainda quis obstar à ação do porteiro, mas tinha o gesto tão cansado e
vagaroso que não alcançou nada; aquele deu volta à chave, envolveu-se na capa,
saiu por uma das já janelas e esvaiu-se no ar, a caminho de algum cemitério,
provavelmente. Se valesse a pena saber o nome do cemitério, iria eu catá-lo,
mas não vale; todos os cemitérios se parecem.” (Cf. ob. cit., pp. 643-4)
Saí dali com a
sensação de haver recuado quase meio século, passando assim a viver novamente o
momento melhor da minha vida.
Mas, como o velho
porteiro do Senado, verifiquei que nada se restaura no tempo, quando muito
apenas as lembranças.
Depois da recepção
calorosa dos alunos, uma vez apresentado pelo diretor, em uma das salas onde
houvera lecionado por algum tempo, procurando dar vida e dimensão humana e
perene a algumas figuras da língua e da literatura portuguesa, pude sentir que
tudo mergulha no lago do esquecimento. Pensei por um minuto que possivelmente
tenha ficado um pouco da memória daqueles instantes para verificar que nem isto
talvez tenha restado. A vida é dinâmica, as gerações se sucedem ao longo do
tempo e o que resta do passado será quando muito um pouco de brasa extinta.
Ao descer com a dedicada companhia de toda a vida, após
despedir-me do afável diretor, as escadas do velho educandário, senti que
aquele passado estaria para sempre mergulhado no esquecimento.Não olhei sequer
para trás para não virar estátua de sal, como na legenda bíblica. Apressei um
pouco os passos para não seguir a imagem do velho porteiro do Senado da
evocação do bruxo do Cosme Velho. Ainda bem que a manhã luminosa e quente me
fez reentra na rotina dos dias presentes.