M. Paulo Nunes
Já falei do assunto
a propósito de Hemingway. Volto a ele hoje evocando a figura de André Gide,
autor muito em voga nas décadas de 40 a 50 do século passado e agora um tanto
esquecido, como tem ocorrido a tantos que tiveram sua estrela ascendente no
mesmo período, como o inglês Charles Morgan, por exemplo, e aos poucos vão
mergulhando no esquecimento. Por que em literatura esse brilho momentâneo de
estrela cadente se, do ponto de vista dos valores literários, foram eles os
melhores. Fico pensando no que acontecerá daqui a alguns anos aos Paulos
Coelhos da vida que, sobre estes sim, o esquecimento e a indiferença deverão
baixar uma densa coluna de chumbo, uma vez passada a onda de leitores que
momentaneamente os idolatram.
Mas, voltemos a
André Gide, uma das mais contraditórias figuras da literatura contemporânea e
aquele que viveu a literatura com a devoção de um”clérigo”. Aliás, o problema
religioso, o problema da sua apostasia em relação ao protestantismo, no seu
caso pessoal, ao calvinismo, foi um dos mais exemplares em nossa época. Não
teve a limpidez e a certeza da conversão de Jacques e Raíssa Maritain ao
catolicismo. Uma vez integrados à Igreja Católica, nunca mais dela se
afastariam. Foi um dos mais edificantes exemplos de conversão religiosa entre
intelectuais. Só me faz recordar o de Tristão de Athayde, entre nós, vindo do
agnosticismo para o cristianismo, pelas mãos de Jackson de Figueiredo e do
Cardeal D. Sebastião Leme.
Gide, não.Viveu até
os últimos dias a sua agonia, a que também somava o drama da suposta perversão
sexual, conforme o comprova o seu Journal. Por falar em Gide, vem-me à
lembrança uma anedota de Graciliano Ramos de que trata um de seus biógrafos.
Depois de realizar
uma viagem à extinta União Soviética de que resultou o seu livro Viagem,
que mereceu severas críticas da linha radical do velho Partidão, como em tudo o
que foge à sua “verdade”, a uma pergunta de uma senhora, numa reunião social;
travou-se o seguinte diálogo:
-
Dizem
que o Sr. voltou da União Soviética como Gide.
-
Como,
minha senhora, pederasta?
O fato se
relacionaria ao homossexualismo de Gide e ao livro Retour de l’URSS, que
o levaria ao rompimento com o Partido Comunista, a que houvera aderido, pouco
antes, e no qual faz sérias restrições àquele país.
Mas, voltemos ao
aspecto literário da obra do autor da Sinfonia Pastoral, esta obra-prima
da literatura universal. Levada à tela, no período áureo do cinema francês,
teve a bela atriz Michèle Morgan no papel de Gertrude, a protagonista central
que, após recobrar a visão, se torna objeto da disputa amorosa entre o pastor
que a acolheu em casa, e o filho, levando-a ao suicídio, numa das melhores
realizações cinematográficas de René Clair.
O notável crítico
Álvaro Lins, uma figura emblemática da nossa crítica literária e de que fiz
neste final de semana a releitura de alguns estudos contidos em sua obra O
Relógio e o Quadrante, (Editora Civilização Brasileira,1964), realizou a
meu ver, um dos melhores estudos sobre Gide, com o título “Prometeu Libertado
em 50 Anos de Literatura.”
Topo
ali, após 40 anos da primeira releitura, com uma observação que me parece
definir bem o papel revolucionário de Gide no romance contemporâneo.
“O que se conclui
da leitura de qualquer livro de Gide é que nenhum deles isoladamente contém a
sua personalidade toda; que ele se defende contra o abandono; que se guarda
sempre para o futuro. Um livro parece completar o outro; todavia, jamais o faz
inteiramente. Les faux-monnayeurs, ao contrário, é o único volume que
concentra toda a obra anterior de Gide; e é também o volume ao qual Gide
resolveu entregar-se todo como quem realiza um sacrifício em oferenda.
“Esperou
os cinqüenta e seis anos de idade para lançar essa obra, a única (informou que
seria a primeira e a última, que a escrevera como se fosse o seu primeiro e
último livro) com o título”romance”. Les faux-monnayeurs está assim
valorizado mais do que qualquer outro, sob um duplo aspecto: é o livro em que
se encontrará mais definida e mais projetada a personalidade de Gide; é o seu
livro que apresenta uma realização literária mais original e mais artística”.
(Ob. cit. pp.54-55)
Ainda, segundo o
autor do Jornal de Crítica, “A sua ambição foi a de renovar a própria
técnica do romance, dando à sua obra uma estrutura até então desconhecida.”
Um outro aspecto a
assinalar na obra de Gide é o do seu estilo, que poderá ser objeto de um outro
estudo, pois o que o caracteriza, ainda segundo o autor que vimos citando, “ é
a concentração, é a simplicidade, é o mínimo de palavras.”
Foi assim com essa técnica, essa temática (a
sua vida interior ou a sua consciência noturna) e esse estilo que ele realizou
uma das mais completas reforma na teoria do romance contemporâneo. E essa
reforma estará presente, sobretudo a partir de sua obra fundamental, traduzida
para nossa língua com o título de Os Moedeiros Falsos, em todos os
autores que fugiram à teoria do romance
do século XIX, como Joyce, como Proust,como Virgínia Wolf, ou como o nosso
Graciliano Ramos.