M. Paulo Nunes*
Retomamos agora o
fio da meada de um tema já tratado anteriormente, em página de nossa imprensa,
que diz de perto com a teoria literária: uma teoria do romance, focando-o agora na figura do romancista
inglês Charles Morgan, de modo especial
em seu livro ou em sua obra-prima, Sparkenbrooke. Hoje é ele autor um tanto esquecido, como tantos outros, neste
nosso tempo voraginoso. Já antes o fizemos em relação a Hemingway e André
Malraux, representantes do chamado romance de ação ou romance espetáculo, como
o denomina Vergílio Ferreira, e do chamado romance interior, aquele que propõe
um problema ao leitor, de que nomeamos Gide como seu representante no romance
moderno, de modo especial destacando seus livros: Os Moedeiros Falsos,
segundo a tradução brasileira de Lés Faux-Monayeurs, e esta outra
obra-prima, A Sinfonia Pastoral. Na mesma vertente, a do romance
psicológico, poderiam ser alinhados autores como Proust, Joyce, Virgínia Woolf
e o nosso Graciliano Ramos.
Para analisar essas
obras teremos que partir do pressuposto de Saramago, ao ser-lhe pedida a
definição do romance contemporâneo, quando utiliza uma expressão bastante
feliz, ao considerá-la hoje em dia, não um gênero literário, como vem sendo
estudado, “mas um oceano que receberia e onde de algum modo se unificariam as
águas afluentes da poesia, do drama, da filosofia, das artes, das ciências...”(Diário
de Lanzarote – II, p. 212) Seria assim uma espécie de homerização do
romance, segundo sua própria expressão. Idéia de resto coincidente com aquela
que venho defendendo, desde as aulas do Liceu ou da Faculdade de Filosofia, ao
considerar o romance a epopéia dos nossos dias.
Todo romancista
vive a sua atmosfera, o clima dominante em sua época, isto constitui um truísmo
que não seria necessário repetir aqui. Na Europa, a literatura refletiu
sucessivamente a época cartesiana, a época kantiana, a época hegeliana, a época
nietzschiana, a época marxista, segundo a interpretação de um crítico de
renome, Álvaro Lins, em estudo contido em sua obra O Relógio e o Quadrante.
(Civilização Brasileira- 1964)
A literatura de
hoje, segundo ainda o mesmo autor, acha-se dominada pela filosofia bergsoniana
ou pela atmosfera marxista. A ela acrescentaríamos a atmosfera freudiana, criada
pelas teorias de Freud, tendo por base os estudos do inconsciente e do
subsconsciente, através da psicanálise.
Enquanto
um Proust, um Joyce, uma Virgínia Woolf, por exemplo, podem ser citados como
romancistas que refletem a atmosfera ou o clima da época bergsoniana, Charles
Morgan, ao contrário, se colocou em sua obra talvez única e original “para além
desta harmonia entre a filosofia e a arte, dentro de sua época, “indo encontrar
em Platão o seu filósofo e tornando-se um autêntico romancista platônico.
Talvez haja contribuído para isto a circunstância de ser o filósofo grego
bastante estudado nas universidades inglesas que freqüentou, inclusive, Oxford,
na linha do raciocínio daquele crítico eminente.
Encontra-se talvez
aí a diferença ou o desencontro entre a
filosofia das obras de nosso tempo e a dos livros de Charles Morgan, de modo
especial Sparkenbrooke, uma vez que os dois anteriores, Retrato no
Espelho e A Fonte, constituem preparação para seu livro posterior,
publicado em 1936 e entre nós traduzido pela Liv. do Globo, em 1943, uma vez
que seu livro A Viagem, também por nós lido ao mesmo tempo, está um
pouco fora dessa conceituação, ou seja,
a do romance platônico.
É claro que esse
clima ou atmosfera platônicos não surge por acaso na história da literatura. Já
o soneto de Petrarca, no renascimento italiano, que tanto brilho trouxe àquela
poesia, ao celebrar a mulher amada como “pura entelechia”, já o fizera muito
antes, levando esta visão inclusive a Camões, que largamente o imitou, em sua obra lírica. Passaria, assim, o imenso
vate, de imitador do soneto petrarqueano a criador do soneto camoniano, também
eivado de platonismo, com larga tradição na literatura de língua portuguesa,
onde criaria inúmeros seguidores ao longo de sua história. Aqueles que se
aproximam de Platão não o fazem por meio da ação, nem por meio da razão, mas
pela imaginação que os levam ao cerne das idéias essenciais, que constituem,
estas sim, a gênese da filosofia do autor dos Diálogos.
Este é um livro
incomum, porque focaliza a vida de um homem extraordinário, embora a sua vida e
a sua experiência existencial nada contenham de excepcional.
Alguns críticos
pretendem que o autor quisesse retratar a vida de Byron, outros a de Shelley
(há de fato a transcrição de vários poemas de Shelley, no livro). Mas, não é
nada disso. O que ele de fato recompõe é a vida de um personagem extraordinário
e, portanto, genial.
Seria esta, como é
bem de ver, uma nova teoria do romance, fora um pouco dos quadros que a vimos
considerando nos estudos anteriores.
Charles
Langbridge Morgan, nascido em Bromeley, no condado do Kent, em 1894, vem a
falecer em Londres, em 1958.
Tendo servido na
Marinha Real Britânica, dela se afasta, em 1917, a ela retornando
temporariamente na guerra de 1914, e participa da malograda expedição a
Antuérpia, tendo sido internado na Holanda, para assim evitar a prisão dos
alemães. É a partir daí que realiza a sua viagem literária até o romance Sparkenbrooke, e a internação lhe fornece o cenário de
seu segundo e belo romance A Fonte,
publicado em 1932.
Despede-se de suas
lembranças da Marinha com The Gunroom, que o Almirantado recolheu,
adquirindo todos os exemplares postos à venda.
Este o sumário
perfil do ideário de um dos maiores romancistas de nosso tempo, hoje quase que inteiramente
desconhecido, porquanto nem as histórias literárias sequer fazem o registro de
sua passagem.
(Resumo da palestra
proferida no último sábado, na Academia)
*(Ex-presidente da
Academia Piauiense de Letras)